Negação da ciência ganha força em nacionalismo que une esquerda e direita

Texto de autoria do Professor de História, Luiz Cesar Marques Filho, da UNICAMP, publicado na edição de hoje (6 de janeiro de 2019) do jornal Folha de São Paulo, discute implicações ambientais das agendas políticas de partidos de esquerda e de direita, em particular no que se refere aos desdobramentos do aquecimento global pela ação antropogênica.

Luiz Marques é professor de história da Unicamp e autor de “Capitalismo e Colapso Ambiental” (Editora da Unicamp).

Ilustrações de Edson Ikê, designer e ilustrador.

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Em março de 2018, António Guterres, secretário-geral da ONU, declarou: “As manchetes são naturalmente dominadas pela escalada das tensões, de conflitos ou de eventos políticos de alto nível, mas a verdade é que as mudanças climáticas permanecem a mais sistêmica ameaça à humanidade. Informações divulgadas recentemente pela Organização Meteorológica Mundial, pelo Banco Mundial e pela Agência Internacional de Energia mostram sua evolução implacável”.

Meses antes, um discurso proferido em Riad, capital da Arábia Saudita, por Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional, exibia um teor similar: “Se não fizermos nada a respeito das mudanças climáticas, seremos tostados, assados e grelhados num horizonte de tempo de 50 anos”.

Ambas as advertências reconhecem a extrema gravidade de nossa situação, a respeito da qual o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) é categórico: “O aquecimento do sistema climático é inequívoco. A influência humana sobre o sistema climático é clara. Limitar a mudança climática requer reduções substanciais e contínuas de emissões de gases de efeito estufa”.

Em seus relatórios, o IPCC colige a literatura científica sobre as mudanças climáticas, e suas conclusões são baseadas em unanimidade. Estas foram endossadas, em seguida, por praticamente todas as Academias Nacionais de Ciência e reforçadas ainda pelas mais prestigiosas associações científicas dos EUA: American Geophysical Union; American Chemical Society; American Association for the Advancement of Science; Geological Society of America; National Research Council; American Physical Society; American Meteorological Society.

Em 2014, a Academia Nacional de Ciências dos EUA e a Royal Society do Reino Unido reiteraram mais uma vez esse endosso numa declaração conjunta, intitulada “Mudança Climática. Evidência e Causas”: “A mudança climática é uma das questões definidoras de nosso tempo. É agora mais certo que nunca, baseado em muitas linhas de evidência, que os humanos estão mudando o clima da Terra”.

Malgrado esse acúmulo de saber e essa virtual unanimidade, a ciência do clima pode estar equivocada? Em princípio, sim. Ciência não é dogma, é diminuição da incerteza. Contestar um consenso científico, mesmo o mais sólido, não pode ser objeto de anátema.

Mas quem o põe em dúvida deve apresentar argumentos convergentes e convincentes em sentido contrário. Na ausência destes, contestação torna-se simples denegação irracional, enfraquece o poder persuasivo da evidência, milita em favor da perda da autoridade da ciência na formação de uma visão minimamente racional do mundo e turbina a virulência das redes sociais, dos “fatos alternativos”, da pós-verdade, do fanatismo religioso e das crenças mais estapafúrdias e até há pouco inimagináveis.

O negacionismo climático é só mais uma dessas crenças, ao lado do criacionismo e do terraplanismo, e seu repertório esgrime as mesmas surradas inverdades, mil vezes refutadas: os cientistas estão divididos a respeito da ciência do clima, os modelos climáticos são falhos, maiores concentrações atmosféricas de CO2 são efeito, e não causa, do aquecimento global e são benéficas para a fotossíntese, o próximo mínimo solar anulará o aquecimento global, não se deve temer esse aquecimento, mas a recaída numa nova glaciação etc.

Esse palavreado resulta de esforços deliberados de denegação das evidências. Diretamente ou através da Donors Trust e da Donors Capital Fund, por exemplo, as corporações injetam milhões de dólares em lobbies disseminadores de desinformação sobre as mudanças climáticas.

Mas apenas a abundância dos meios colocados à disposição da desinformação não pode explicar seu relativo sucesso. O que, sobretudo, o explica é o fato de que a mensagem dos negacionistas encontra um terreno fértil onde florescer. Antes de mais nada, a denegação da ciência do clima encontrou e ainda encontra guarida num nacionalismo em que certa esquerda retrógrada e a extrema direita se confundem.

Segundo esse nacionalismo, mudanças climáticas e movimentos ambientalistas em geral seriam uma cortina de fumaça para ocultar os reais desígnios imperialistas de negar aos países pobres seu próprio direito ao desenvolvimento.

Exemplo desse nacionalismo foi a aliança da ex-presidente Dilma Rousseff e Aldo Rebelo, ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, com o agronegócio devastador da Amazônia e do cerrado. Se a Amazônia é nossa, afirma esse néscio nacionalismo, temos o direito de destruí-la em benefício de nossas exportações de soja e carne.

Afinal, os imperialistas já destruíram suas florestas e nós destruímos, desde 1970, apenas cerca de 800 mil km² da floresta amazônica e pouco mais de 1 milhão de km² do cerrado —ou seja, apenas 20% da Amazônia e 50% do cerrado. Definitivamente, ainda temos muito a destruir e não vamos tolerar lições ou injunções imperialistas.

Defesa resoluta dessa devastação encontra-se na pena de Denis Rosenfield, num texto publicado no Instituto Millenium, um think tank brasileiro de extrema direita: “Apesar de sua aura de politicamente corretas, [as ONGs contrárias ao novo código florestal] representam interesses concretos, mormente de países do primeiro mundo que competem com o Brasil e gostariam de ter maior ingerência em nossos assuntos. Agricultura, pecuária, agronegócio e energia ficariam com eles, enquanto nós deveríamos cuidar de nossas florestas”.

Outro exemplo de nacionalismo anticiência é a defesa do “o petróleo é nosso”, como se o combustível nacional aquecesse menos o planeta ou como se houvesse um CO2 “do bem”, já que este se traduziria em desenvolvimento para o país. Como se fosse possível, em pleno 2018, desenvolver-se afundando ainda mais o pé no acelerador do colapso socioambiental a que um próximo aquecimento médio global superior a 2º C nos condenará. A forma mais rápida, à esquerda e à direita, de “resolver” tal contradição nos termos é simplesmente negar ou desconsiderar a ciência.

Malgrado alguma tangência ideológica com certa esquerda, o negacionismo climático e a negação da ciência em geral são fundamentalmente uma bandeira da extrema direita, e é preciso pôr em evidência uma razão maior dessa estreita afinidade. Ela se encontra, a meu ver, numa mutação histórica fundamental do teor do discurso científico.

Das revoluções científicas do século 17 a meados do século 20, a ciência galgou posição de hegemonia, destronando discursos de outra natureza, como o religioso e o artístico, porque foi capaz de oferecer às sociedades vitoriosas mais energia, mais mobilidade, mais bens em geral, mais capacidade de sobrevivência —em suma, mais segurança. Seus benefícios eram indiscutíveis e apenas confirmavam suas promessas, que pareciam ilimitadas.

A partir de 1962, se quisermos uma data, o livro “Primavera Silenciosa”, de Rachel Carson, punha a nu pela primeira vez o lado sombrio dessas conquistas da ciência: agrotóxicos como o DDT aumentavam, de fato, a produtividade agrícola, mas ao preço de danos tremendos à saúde e à biodiversidade.

Essa primeira dissonância tornou-se muito maior nos anos 1980, quando o aquecimento global resultante das emissões de CO2 pela queima de combustíveis fósseis —justamente os combustíveis aos quais devíamos o essencial de nosso progresso— tornou-se pela primeira vez inequívoco.

A ciência começa, então, a mudar seu discurso. Ela passa a anunciar que havíamos passado da idade das promessas à idade das escolhas, de modo a evitar a idade das consequências. De condutora da humanidade à terra prometida do progresso ilimitado, a ciência começou a se tornar, sobretudo após 1968, com a criação da Union of Concerned Scientists no MIT, um foco de alerta sobre o potencial destrutivo do modo expansivo de funcionamento da sociedade que era em grande parte sua criatura.

Uma brecha começava a se abrir na imagem social da ciência. Enquanto os cientistas diziam o que queríamos ouvir, tudo era defesa e apologia da ciência. A partir do momento em que seu discurso converteu-se em alertas e advertências sobre os riscos crescentes a que começávamos a nos expor, o entusiasmo arrefeceu. A criatura começou a duvidar de sua criadora. E se tudo não passasse de alarmismo? E se a ciência tivesse se colocado, mais ou menos secretamente, a serviço dos descontentes do capitalismo?

Em nosso século, esse novo mal-estar na civilização não cessou de crescer. Ele toma hoje a forma de uma espécie de divisão esquizofrênica da autoimagem de uma sociedade moldada pela ciência.

Quando entramos em um avião, atravessamos uma ponte ou tomamos um remédio, somos gratos às tentativas da ciência de compreender o mundo e traduzi-lo em tecnologia. Mas quando dessa mesma ciência vem o aviso de que é preciso mudar o modo de funcionamento de nossa economia, conter nossa voracidade, diminuir o consumo de carne, restaurar as florestas e redefinir nossa relação com a natureza, sob pena de nos precipitarmos num colapso de insondáveis proporções, a gratidão cede lugar à indiferença, ao descrédito e mesmo à hostilidade.

Ocorre que os fatos se acumulam nos jornais, a confirmar teimosamente os relatórios, os apelos e os alertas sempre mais veementes da comunidade científica. E por mais que nossas sociedades fechem olhos e ouvidos à realidade, esta acaba por se infiltrar, ainda que residualmente, em seu imaginário, suscitando uma angústia difusa, mas fundamentalmente justificada, de que o futuro será pior.

E surge aqui subitamente, numa curva inesperada da história do século 21, a grande e única oportunidade da extrema direita de voltar a ocupar, após os anos 1930, uma posição de relevo no cenário político, pois sua miséria mental e intelectual, feita de horror à liberdade sexual, de defesa do patriarcalismo autoritário, de criacionismo e obscurantismo religioso, torna-se o discurso mais apto a incutir uma ilusão de segurança a uma sociedade cada vez mais temerosa de seu presente e de seu futuro.

A extrema direita viceja à sombra da crescente insegurança material e psicológica das sociedades contemporâneas. Assim, paradoxalmente, quanto maiores forem as evidências de que o futuro se afigura pior, quanto mais devastadores forem os impactos das mudanças climáticas e do declínio da biodiversidade, mais irracionalmente obstinada será a recusa a admitir a causa fundamental desse processo, apontada ao longo de mais de meio século pela ciência: a interferência crescentemente destrutiva de nosso sistema econômico expansionista sobre os equilíbrios do sistema Terra.

A eficiência da agenda negacionista da extrema direita não se explica apenas, portanto, pelo intenso trabalho de desinformação de lobbies e think tanks subvencionados pelo “big oil” e pelo “big food”.

Explica-se também, e talvez sobretudo, pelo fato de que o discurso negacionista nutre-se do medo e do compreensível desejo das pessoas de se apegar cegamente à identidade de tribo, à eliminação da dissonância, à autoridade moral do pater familias, em suma, ao mundo do passado, aquele mundo em que o futuro era, malgrado os “tropeços” da história, uma promessa.

Ironicamente, a denegação da ciência do clima é, em última instância, uma reação psicológica às próprias mudanças climáticas. Os negacionistas são os primeiros a confirmar, de modo involuntário, a realidade do que negam.

Denegar a realidade ou diluí-la em otimismo paternalista para consumo do “grande público” só diminui nossas chances de adaptação ao que o futuro nos reserva —consignado no recente relatório especial do IPCC.

Evitar um aquecimento médio global não superior a 1,5 ºC —evitar, em suma, a catástrofe— requer agora de nossas sociedades esforços sem precedentes. Requer reduzir em menos da metade, a cada década, as emissões globais de gases de efeito estufa, causadas sobretudo pela queima de combustíveis fósseis, pelo desmatamento e pela agropecuária.

Dos 41 bilhões de toneladas (gigatoneladas ou Gt) de CO2 atuais, devemos passar a emitir apenas 18 GtCO2 em 2030 e enfim zero GtCO2 em 2050 (em emissões líquidas). Em seguida, deveremos sequestrar o CO2 já acumulado na atmosfera, graças a tecnologias ainda indisponíveis na escala requerida.

Não estamos nos preparando para esse esforço de guerra. Estamos, ao contrário, aumentando nossas emissões em pleno 2018, e nenhum estudo projeta redução da queima de combustíveis fósseis e de desmatamento no próximo decênio em escala global. Nada mais, em suma, parece nos afastar da trajetória de um aquecimento médio global superior a 2ºC acima do período pré-industrial já nos próximos decênios e a um aquecimento entre 3,1ºC e 4,8ºC até o final do século, como mostra o primeiro gráfico a seguir.

 

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Num artigo publicado na revista da Academia Nacional de Ciências dos EUA, Yangyang Xu e Veerabhadran Ramanathan categorizaram os impactos provocados por tais níveis de aquecimento médio global em relação ao período pré-industrial: “Acima de 1,5 ºC = perigoso; acima de 3 ºC = catastrófico; acima de 5 ºC = desconhecido, significando além de catastrófico, o que inclui ameaças existenciais à nossa espécie”.
Os autores afirmam que, mantidos os atuais níveis de emissões de gases de efeito estufa, há uma pequena probabilidade de um aquecimento catastrófico até 2050.

Os que contestam a capacidade dos modelos científicos de predizer quando o aquecimento médio global atingirá níveis catastróficos não percebem o simples fato de que o atual aquecimento médio global, de cerca de 1ºC, já é catastrófico. Basta atentar para a proliferação de ondas mortíferas de calor, as extinções em massa, o aumento da fome, as maiores secas, os furacões e os incêndios florestais que varrem o planeta.

Os dados são acachapantes. Ilustro aqui, por razões de espaço, apenas um aspecto dessa catástrofe: a elevação do nível do mar por expansão térmica dos oceanos e pelo degelo. Essa elevação já se tornou irreversível e está em assombrosa aceleração, passando de uma taxa média anual de 0,6 mm nos decênios 1900-1930 para 4,4 mm em média por ano no período 2010-2015, como mostra o segundo gráfico.

Essa aceleração continuará. Conforme assegura Qin Dahe, codiretor do quinto relatório do IPCC, de 2013, “o nível médio global do mar continuará a se elevar a uma taxa mais rápida que a observada nos últimos 40 anos”. Em 2016, o degelo da Groenlândia prolongou-se por 20 a 40 dias mais que a média do período 1979-2015.

Segundo Robert DeConto e David Pollard, “hoje medimos a elevação do nível do mar em milímetros por ano. Falamos de um potencial para medi-la em centímetros por ano apenas pelo degelo da Antártida”.
As projeções de elevação média do nível do mar entre 1992 e 2100 variam de 50 centímetros a 2,5 metros, segundo a National Oceanic and Atmospheric Administration (2017), dos Estados Unidos. Até 2030, essa elevação média será de 13 a 21 cm em relação ao nível de 2000; até 2040, de 18 a 36 cm (cenários intermediário baixo e alto, respectivamente).

É inimaginável o caos global que isso provocará, levando-se em conta que, em todo o século 20, essa elevação foi de cerca de 20 cm. Mais da metade das metrópoles do mundo encontram-se na linha costeira. Serão frequentemente inundadas. Muitas usinas nucleares estarão ameaçadas, isso sem falar na salinização dos estuários e dos aquíferos costeiros, dos quais depende a segurança alimentar e hídrica de centenas de milhões de pessoas.

É isso que a ciência clama aos quatro ventos, com sempre novos (e piores) dados de realidade, análises e projeções. Pode-se continuar negando a ciência. Ao eleger um presidente hostil ao consenso científico, o segmento mais escolarizado, portanto supostamente mais informado, do eleitorado brasileiro efetivamente a negou.

Primeiras consequências: a ministra da Agricultura é a “musa do veneno”, o ministro das Relações Exteriores considera as mudanças climáticas uma “ideologia” das esquerdas e o ministro do Meio Ambiente, réu em processos ambientais, considera-as uma questão secundária.

Esses eleitores não têm sequer o perdão da ignorância quando acolheram como um bem, ou (o que dá no mesmo) como um mal menor, a negação brutal da ciência e da realidade. Escolheram acreditar que a realidade não existe. Só que, como bem lembra Philip K. Dick, “a realidade é isto que não vai embora quando você para de acreditar nela”.

Sobre esses eleitores recairá o desprezo das crianças e adolescentes de hoje, que não poderão pagar a conta do colapso ambiental que seus pais lhes deixaram.

Na mira de Bolsonaro, obra de Paulo Freire é pilar de escolas de elite

Notícia publicada na edição de hoje, 6 de janeiro de 2019, trata do possível abandono de abordagens pedagógicas desenvolvidas pelo educador Paulo Freire pelas escolas brasileiras durante o atual governo. Leia a reportagem completa.

Entre os poucos detalhes conhecidos sobre os planos para a educação do novo governo, chama a atenção no programa de Jair Bolsonaro (PSL) a citação ao nome de um educador. O presidente quer expurgar Paulo Freire das escolas brasileiras.

Não há detalhes sobre o significado prático disso, mas a ideia é criticada por educadores. Seu método e filosofia exercem forte influência em algumas das melhores escolas do país. Além disso, Freire é o intelectual brasileiro mais reconhecido em todo o mundo.

Para especialistas, o pernambucano, morto em 1997, transformou-se em bode expiatório para quem acusa professores de uma suposta doutrinação. Estaria na obra de Freire, e na sua influência entre professores, ferramentas para um ensino sectário, além de uma das explicações para os fracassos da educação pública nacional —o que não é compartilhado por líderes de escolas de elite.

Nascido em 1921, no Recife, Freire desponta como referência para a educação popular no início dos anos 60, quando desenvolve um bem sucedido método de alfabetização de adultos em Angicos, interior do Rio Grande do Norte. O método, que parte dos saberes e experiências acumuladas, ganhou o mundo.

O autor desenvolve uma pedagogia crítica (que vai além do método de alfabetização) com princípios fincados no diálogo entre professores e estudantes e no valor da educação como ferramenta para emancipação individual e social.

“É a visão de que educar é um ato político, não partidário, nem de esquerda, mas da escola envolvida nos problemas contemporâneos”, diz Franciele Busico, professora do Instituto Singularidades e coordenadora pedagógica na rede municipal de São Paulo.

O principal livro de Freire, “Pedagogia do Oprimido”, está entre as cem obras mais citadas em língua inglesa, segundo o Google Scholar, ferramenta de literatura acadêmica. É o único brasileiro nessa lista. Na área de educação, aparece como o segundo mais referenciado —o volume de citações é um dos mais importantes indicadores de relevância científica.

Educadores estrangeiros como Peter McLaren e Michael Apple dialogam com sua obra. Há centros de estudos inspirados em Freire em países como Finlândia e Canadá.

O economista Martin Carnoy lembra que o conceito de educação “como libertação da ignorância e subjugação política” é tema comum na filosofia do Iluminismo, de Rousseau, Thomas Jefferson, até mesmo de John Stuart Mill. Carnoy é professor em Stanford (EUA) desde 1969. “O ataque de Bolsonaro a Freire”, escreveu ele à Folha, “é um ataque aos próprios fundamentos da democracia ocidental e ao conceito de liberdade”.

Para Carnoy, Freire conseguiu alcançar dezenas de milhões de pessoas com uma mensagem clara sobre o papel da educação em uma sociedade livre. “Todos, não importa quão pobres, não importa quão marginalizados, merecem ter uma educação.”

Para educadores brasileiros, a obra do pernambucano é mais reconhecida lá fora.

O professor Júlio Emílio Diniz-Pereira, da Universidade Federal de Minas Gerais, explica que o grande impacto da obra de Freire foi entender que a educação era essencialmente política em um momento, nos anos 60, em que a escola era concebida apenas como instrução.

Pesquisador em formação de professores, Diniz-Pereira afirma que, apesar da sua importância, a ideia de que Paulo Freire seja o livro de cabeceira de todos os professores não é verdadeira. “A minha experiência empírica é de uma grande ausência de Paulo Freire nas licenciaturas e nos cursos de formação de professores”, diz.

A presidente da Anped (associação de pós-graduação em educação), Andrea Gouvea, diz que Freire não chega a ser o autor mais estudado por aqui. “Há um desconhecimento e preconceitos [por parte de quem o ataca], o que impede um debate. Nem há predominância de Paulo Freire em nenhuma diretriz educacional”, diz.

Diretor do tradicional colégio Rio Branco de Higienópolis, no centro de São Paulo, Renato Júdice concorda: “Quem dera as ideias dele estivessem mais presentes, quando propõe mais autonomia, mais crítica do conhecimento”, diz ele, que ressalta a repercussão internacional de seus estudos.

“Todo educador no mundo inteiro tem como referência Paulo Freire”, afirma Mauro Aguiar, diretor do colégio Bandeirantes, na zona sul de SP.

MÉTODO
Como método Paulo Freire ficaram conhecidas as estratégias de alfabetização em que se parte do conhecimento e da realidade social do estudante.

Essas concepções filosóficas influenciaram pesquisas e práticas pedagógicas no Brasil. Mas não é possível dizer que há em Freire uma proposta fechada para alfabetização de crianças.

Há um debate no país sobre a eficácia de diretrizes de alfabetização, sobretudo entre o chamado método fônico (que concentra atenção na relação entre letras e sons para depois chegar à leitura) e o construtivista (que, em resumo, alfabetiza já focado na leitura de textos que, de preferência, façam sentido para o aluno). Críticas indicam que esse último seria a tendência nacional, com a influência de Freire, e os resultados ruins da educação seriam derivados disso.

Estudiosos como a professora emérita da UFMG, Magda Soares, criticam a ausência de referenciais metodológicos na maioria dos professores alfabetizadores do país. Os maus resultados estariam mais ligados às deficiências no sistema de formações de docentes do que na adoção de um método específico.

A definição do que se deve ensinar nos anos de alfabetização, presente na Base Nacional Comum Curricular, é apontada ainda como um caminho para melhorias.

Segundo pesquisadores, a obra de Paulo Freire transita entre a filosofia da Educação e a didática, com uma ênfase grande nos temas de educação popular. As críticas a Paulo Freire, no entanto, são praticamente centradas na inspiração marxista de seus textos.

Freire trabalhava com os conceitos de classe social e defendia a educação como ferramenta de emancipação e superação das injustiças. Sua visão filosófica de que não existe educação neutra tem sido interpretada como convite a doutrinação.

CHÃO DA ESCOLA
No também tradicional colégio Santa Cruz, na zona oeste da capital paulista, Freire tem grande importância, explica a diretora Debora Vaz. “Paulo Freire nos convida a compreendermos o chão da escola como o lugar no qual o professor valoriza os saberes dos alunos como ponto de partida para qualquer situação significativa de aprendizagem.”

Entre os egressos do Santa Cruz estão o cineasta Fernando Meirelles, o apresentador Luciano Huck e o banqueiro Roberto Setubal, copresidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco Holding.

Ana Fernandes, umas das coordenadoras pedagógicas do colégio confessional Santa Maria, na zona sul de SP, relaciona o autor a práticas descritas como modernas na educação. “Hoje é inaceitável que se comece uma sequência didática sem considerar o conhecimento prévio do alunos”, diz.

Segundo Ana Fernandes, já não é mais possível imaginar alunos passivos. “Eu coordeno turmas de 4º ano e as meninas começaram a reivindicar o espaço delas no futebol, sempre dominado pelos meninos. Elas conversaram comigo e organizamos o horário”, diz. Agora, elas têm a quadra para futebol às terças e quintas.

Os ataques ao pernambucano ganharam força em meio à onda conservadora que cresce no Brasil pelo menos desde 2013. Nos atos que antecederam o impeachment de Dilma Rousseff (PT), manifestantes pediam “menos Paulo Freire”.

O fato de ele ser um teórico do campo da esquerda, influenciado pela crítica marxista ao capitalismo, seria determinante para que os críticos exigissem um novo exílio de sua obra. Paulo Freire foi preso depois do golpe de 1964 e se exilou naquele ano, só retornando ao Brasil em 1980.

Grupos conservadores tentaram anular no Congresso o título de patrono da educação brasileira concedido em 2012. Após atuação de parlamentares e organizações de educação, a iniciativa foi derrubada na Câmara em 2017.

A educadora Ausonia Donato, diretora do colégio Equipe, na região central de SP, enfatiza a centralidade de Freire no projeto educacional da escola, mas ressalta que a própria filosofia do autor é incoerente com qualquer doutrinação.

“É um desconhecimento sobre o que Paulo Freire escreveu. ‘Ninguém educa ninguém’, as pessoas se educam mediatizadas, e ‘ninguém se educa sozinho’”, explica, citando o autor. “Isso já derruba qualquer frase sobre doutrinação.”

A onda de ataques a Paulo Freire e a efervescência em torno de projetos de lei inspirados no programa Escola sem Partido, que busca limitar o que o professor pode falar e vetar abordagens de gênero, ocorrem no mesmo momento em que o Brasil vê metas de inclusão escolar serem pouco observadas.

Também estão em discussão no país o formato da escola, o papel dos professores, o melhor aproveitamento da tecnologia e a importância de trabalhar melhor competências socioemocionais nas aulas, como resiliência, autonomia e trabalho em equipe.

Em Cotia, na Grande SP, o projeto Âncora tem sido reconhecido como uma das escolas mais inovadoras do país. Inspirada na portuguesa Escola da Ponte, a unidade não tem divisão de séries nem idade, e os próprios alunos constroem sua agenda de estudos.

A educadora Suzana Ribeiro diz que autonomia é a palavra-chave da escola. “A contribuição de Paulo Freire é fundamental na nossa filosofia. Ele revela a necessidade e a vibração que a autonomia traz.”
O país está ainda em meio ao seu mais profundo debate sobre currículo. A Base Nacional Comum Curricular da educação infantil e do ensino fundamental está em fase de implementação, e a do ensino médio, aprovada no fim do ano passado, deve começar a ser aplicada. O documento define o que os alunos devem aprender na educação básica.

Freire não é citado no texto, mas foi precursor de discussões sobre currículo no país quando esteve na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (1989 a 1991). Foi pioneiro nos debates sobre programas de tecnologia na educação, no mesmo período.

A Folha solicitou à equipe de Bolsonaro, ainda antes da posse, detalhes sobre o que o governo entende por “expurgar” o autor, mas não obteve resposta. Também questionou o ministério após a transmissão de cargo ao ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, mas a pasta informou que não se posicionaria.

Vélez Rodríguez já escreveu que houve um processo de domínio da ideologia marxista nas escolas com base nas ideias de Paulo Freire, que teria sido um “grande pedagogo dentro da ideologia marxista-gramsciana”. No discurso de posse, o ministro afirmou o compromisso de libertação das escolas da suposta dominação do marxismo cultural.

72.359 é o número de citações de “Pedagogia do Oprimido” registradas pelo Google Scholar, ferramenta de pesquisa para literatura acadêmica em inglês

99ª obra mais citada do mundo, segundo a ferramenta. É o único autor brasileiro entre os 100 mais citados

2ª obra mais citada no mundo na área de educação em artigos em inglês