Complexidade irredutível e o “argumento do design”

O texto a seguir foi originalmente publicado no blog “Química de Produtos Naturais” em 3 de junho de 2010.

O termo “complexidade irredutível” foi criado por Michael Behe (Behe, 1996) para designar estruturas ou sistemas biológicos formados por componentes essenciais para o funcionamento íntegro destas estruturas ou sistemas. A ausência de um único componente destes não permitiria que estes fossem operacionais. Como exemplos, Behe indica o flagelo bacteriano, os ciclos bioquímicos (o Ciclo de Krebs, o Ciclo de Calvin, etc.), o olho, o DNA e o cérebro. Segundos Behe, tais estruturas ou sistemas não poderiam ter surgido gradualmente, como indica a teoria da evolução, através de mudanças gradativas. Logo, seriam objeto de um “design”.

De acordo com a proposta do Movimento do Design Inteligente (MDI), um “designer inteligente” teria criado milhões de linhagens de bactérias com flagelos, de uma só vez. Todavia, estudos genéticos, fisiológicos e anatômicos indicam que os flagelos surgiram ao longo da evolução a partir de um ancestral comum. Para muitos tipos de bactérias a função primária dos flagelos é a excreção, e não propulsão. Para outras bactérias, o flagelo é utilizado para que a bactéria possa aderir a uma superfície, ou a outras bactérias (Aizawa, 2001). Flagelos foram tornando-se cada vez mais complexos ao longo da evolução. Por exemplo, em Archea (bactérias primitivas) 18 a 20 genes são necessários para o desenvolvimento de um flagelo de 2 partes, utilizado principalmente para excreção e adesão. Na bactéria Campylobacter jejuni são necessários 27 genes para a formação de um flagelo já envolvido em atividades motoras. Na bactéria Escherichia coli são necessário 44 genes para a formação de um flagelo que atua para o movimento coordenado da bactéria. Ou seja, o processo evolutivo é claro. Não há design inteligente (http://www.newscientist.com/article/dn13663-evolution-myths-the-bacterial-flagellum-is-irreducibly-complex.html ). Ver também Liu e Ochman (2007).

Apesar disso, Behe, em seu recente “The Edge of Evolution”, insiste que um “designer inteligente” interveio no processo evolutivo de maneira a produzir as formas de vida que se conhece, que não podem ser fruto do acaso ou de mutações aleatórias (Behe, The Edge of Evolution). Entretanto, Behe não faz juz ao conceito de forma correta, pois a diversidade de formas não é gerada por mutações aleatórias e sim pelo processo de seleção natural. Muito embora mutações genéticas sejam aleatórias, a seleção natural não o é. Resulta da interação dos indivíduos de uma espécie com outras espécies e com o ambiente natural.

William Dembski então argumenta que, na improbabilidade da ação do acaso, a ação do “design” seria a única forma do aparecimento da diversidade biológica. Dembski não consegue fazer a distinção entre puro acaso e processos contingentes da evolução. Ao ilustrar a Teoria da Evolução de maneira reducionista e mecânica, tanto Behe quanto Dembski alegam que a evolução orgânica dependeria de puro acaso, o que seria totalmente implausível. Com isso, só um “design inteligente” justificaria o aparecimento de estruturas e sistemas biológicos “irredutivelmente complexos”. De acordo com Dembski, “O que as leis físicas não conseguem explicar é como produzir contingência (…). Se esta não surge como resultado das leis naturais, então como surge a contingência? Somente duas respostas são possíveis: ou a contingência é cega e sem propósitos, e resulta do puro acaso, ou é um processo guiado, com um propósito, fruto de uma causa inteligente (Dembski, Intelligent Design, 165). O que Dembski faz questão de não mencionar é que a contingência opera ao longo de processos estabelecidos do ponto de vista histórico e estrutural.

A abordagem de Behe e Dembski é fundamentalmente reducionista e mecânica, e não leva em consideração o desenvolvimento dinâmico e as interações que ocorrem na natureza. Desta forma, estruturas e sistemas que superficialmente podem parecer “irredutivelmente complexos” são, na verdade, fruto de um processo extremamente complexo de interações. Os primeiros estágios do surgimento de tais estruturas e sistemas é o ponto chave para o entendimento de como se desenvolvem de formas menos complexas para mais complexas. Como o processo de seleção natural não tem um propósito ou destino, pois não existe um objetivo evolutivo, o processo da seleção natural apenas preserva as mutações aleatórias que promovem vantagens adaptativas.

O desenvolvimento do olho é um bom exemplo de como isso ocorreu. Olhos primitivos ainda existem, hoje, em vermes, que detectam apenas variações de intensidade de luz e se orientam de acordo com estas variações. Ora, se, por um acaso, uma mutação faz com que indivíduos que detectam apenas intensidade de luz passem a detectar movimento, ou uma gradação de cores, terão adquirido uma ligeira vantagem adaptativa sobre aqueles indivíduos que não têm esta capacidade. Assim, 1% de visão é melhor que a cegueira total, e 6% é melhor do que 5%, e 10% é melhor do que 6%. O desenvolvimento do olho, de maneira gradual, não somente é perfeitamente plausível como foi verificada pela análise filogenética molecular. Os genes que codificam para a formação e o funcionamento dos olhos de humanos, polvos, sapos, insetos e crustáceos são essencialmente os mesmos, tendo surgido há aproximadamente 600 milhões de anos (Carl Zimmer, Evolution, Harper Collins Publishers, New York, 2008, p. 128).

Uma explicação diferente para o surgimento de estruturas e sistemas aparentemente “irredutivelmente complexos” foi fornecida pelo falecido biólogo Stephen Jay Gould. De acordo com Gould, quando se originaram, tais estruturas e sistemas não teriam uma função definida. A função seria definida ao longo da história evolutiva à qual tais estruturas e sistemas fossem submetidos. Gould argumenta que os organismos vivos não são apenas resultado de influências do ambiente, mas também de sua integridade estrutural, que limita e direciona a variação através da qual opera a seleção natural (Gould, 2002). Desta forma, a evolução não seria isotrópica, igual em todas as direções. Embora mutações produzam variação genética de maneira aleatória, sem necessariamente promover vantagens adaptativas, tal processo não estabelece que as variações na forma (fenotípicas) não possam ter uma direção preferencial. O desenvolvimento estrutural de um organismo ao longo de sua vida limita a variação fenotípica que será possível apresentar, pois mudanças surgidas em um determinado estágio determinarão as mudanças possíveis em um estágio posterior. Assim, mudanças estruturais em determinadas características de um organismo irão influenciar na estrutura e funcionamento do organismo como um todo. Tais informações são transmitidas geneticamente de geração para geração, e não permitem modificações por demais significativas. Ou seja, o processo evolutivo resulta de um processo dialético entre “o interno” (que seriam restrições estruturais herdadas geneticamente) e “o externo” (pressões seletivas ambientais), de maneira análoga à ontogenia (desenvolvimento ao longo da vida) dos indivíduos, que resultam de interações dialéticas entre seus genes e o ambiente. Gould define um organismo vivo como sendo “uma entidade integrada exercendo restrições sobre sua história, ao mesmo tempo em que se situa em um ambiente específico” (Gould, 1980).

Gould confessa que esta idéia foi exposta por Darwin. Naturalistas do século XIX adotaram duas possíveis abordagens para explicar a evolução: funcionalista (Darwin, Lamarck e Cuvier) e formalista, ou estruturalista (Saint-Hilaire, Owen e Goethe). Os funcionalistas diziam que as características dos organismos existiam por razões de utilidade; já os formalistas enfatizavam a unidade estrutural comum entre organismos aparentados. Os formalistas negavam a possibilidade da evolução, pois acreditavam que somente modificações superficiais eram possíveis. Membros do MDI como Benjamin Wiker e Jonathan Witt tomaram emprestados os argumentos dos formalistas para justificar a ação de um “designer”.

No entanto, os argumentos dos formalistas foram postos por terra por Darwin e outros, que comprovaram que estruturas biológicas também estão sujeitas ao processo evolutivo, embora de forma limitada devido às suas características inerentes. Sendo assim, Darwin promoveu uma quebra do paradigma no debate funcionalista-formalista, adicionando uma nova dimensão: o fator histórico. Contudo, os membros do MDI não perceberam (ou não quiseram perceber) tal mudança neste debate, e se ativeram aos argumentos formalistas.

Um outro conceito introduzido por Gould (e Elisabeth S. Vrba) é o conceito de exaptação. Exaptação é a utilização de uma característica existente para um novo propósito funcional (Gould e Vrba, 1982). Tal característica pode tanto se originar através da seleção natural para propósitos adaptativos, na qual a derivação para um novo propósito representa uma variação funcional, ou tal característica pode ser um spandrel (termo definido como uma característica fenotípica que é um produto secundário da evolução de outra característica, em vez de ser um produto direto da seleção adaptativa) que não teria surgido através da adaptação, mas como um efeito estrutural co-lateral. Artigo recentemente divulgado pelo Boletim da Agência FAPESP traz um exemplo de exaptação: a dormência de sementes de determinadas árvores não teria surgido para superar uma deterioração fisiológica das mesmas, mas adquiriu esta função ao longo do tempo (Fabio de Castro, “Esperteza vegetal”, Boletim Agência FAPESP, 19/4/2010).

A mente humana seria um exemplo contundente de exaptação, e não de “complexidade irredutível”, pois claramente é produto de um longo processo evolutivo, no qual aqueles indivíduos que tiveram suas capacidades mentais aguçadas adquiriram vantagens adaptativas e deram origem ao Homo sapiens. A capacidade de ler, de escrever, de apresentar conceitos matemáticos extremamente complexos e criar obras de arte não teve papel na origem da mente. Estruturas complexas, como a mente, são inerentemente cheias de potencial e apresentam inúmeras propriedades emergentes. Tais estruturas frequentemente podem assumir funções outras do que aquelas para as quais a seleção natural as fez prevalecer. Quando compreendemos tais explicações, e podemos apreciar o significado dos “spandrels” e da exaptação, os argumentos do design inteligente se desintegram e a origem física da vida se torna aparente. Edward O. Wilson considera que até mesmo a cultura seja um produto de seleção natural (E. O. Wilson, Consciliência, p. 119-130).

Uma vez proposto o conceito de exaptação por Gould, este também pôde ser utilizado para explicar a evolução do flagelo bacteriano (Pallen e Mtazke, 2006). Como mencionado na postagem anterior sobre este assunto, flagelos de diferentes linhagens bacterianas exerceram funções diferentes. Assim, uma explicação meramente funcionalista e teleológica, que visa justificar o flagelo como um órgão responsável pelo movimento de bactérias, não se sustenta. Os elementos chave para a formação do flagelo resultam da exaptação de “formas flagelares” que surgiram (através da evolução) por outras razões.

Na natureza existem muitas estruturas que podem dar origem a sistemas ordenados e complexos através da seleção natural. O surgimento de tais estruturas são direcionadas por princípios físicos, químicos e matemáticos. D’Arcy Wentworth Thompson foi um dos biólogos pioneiros a argumentar sobre a ocorrência repetitiva de formas ordenadas, como espirais (em conchas e chifres de carneiros, por exemplo) e hexágonos (colméias de abelhas e estruturas de corais). Biólogos aceitam que a forma esférica das células, por exemplo, não seja resultante de uma informação genética e sim tenha origem em forças puramente físicas. Stuart Kauffman argumenta que o que se considera “ordem” na natureza surge naturalmente através da emergência de sistemas complexos (Kauffman, 1993). Kauffman sugere que a diversidade das células presentes nos organismos vivos não resulta somente de um processo histórico, mas seria resultante de princípios auto-organizacionais de sistemas dinâmicos. Tal ordenação seria produzida através de um processo completamente natural através da interação de várias forças e processos que originam uma estrutura emergente. A organização cria um potencial para a emergência de novas formas de organização, novas formas de vida, novas funções e comportamentos, impossíveis em formas menos organizadas. A ordem espontânea que emerge em sistemas complexos pode prover estruturas iniciais de formas orgânicas sobre as quais atua a seleção natural.

A tradição estruturalista (formalista) da Biologia explica a emergência de características altamente complexas, que podem parecer “irredutivelmente complexas” à primeira vista. A combinação do estruturalismo com a dialética é a chave para entender o processo evolutivo e o desenvolvimento das formas biológicas que conhecemos. As leis naturais e as contingências históricas explicam a complexidade na natureza, deixando completamente de lado a necessidade de um “designer”.

Bibliografia consultada

Andrew J. Petto and Laurie R. Godfrey, Scientists Confront Creationism – Intelligent Design and Beyond, W. W. Norton & Co., 2007.

E. O. Wilson, Consciliência, Editora Campus, 1998.

J. B. Foster, B. Clark, R. York, Critique of Intelligent Design, Monthly Review Press, New York, 2008.

Lynn Margulis and Dorion Sagan, What is Life?, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 2000.

M. Behe, Darwin’s Black Box, Free Press, New York, 1996.

Mark J. Pallen & Nicholas J. Matzke, From The Origin of Species to the origin of bacterial flagella, Nature Reviews Microbiology 2006, 4, 784-790).

Michael Shermer, Why Darwin Matters, Owl Books, , New York, 2006.

Niall Shanks, God, the Devil and Darwin, Oxford University Press, 2006.

R. Liu e H. Ochman, Stepwise formation of the bacterial flagellar system, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, volume 104, páginas 7116-7121, 2007.

S. A. Kauffman, The Origins of Order: Self-organization and Selection in Evolution, Oxford University Press, New York, 1993).

S. I. Aizawa, Bacterial flagella and Type-III secretion systems, FEMS Microbiology Letters, volume 202, páginas 157-164, 2001)

S. J. Gould, E. S. Vrba, Exaptation – A Missing Therm in The Science of Form, Paleobiology, 1982, 8, 4-15)

S. J. Gould, Is a New and General Theory of Evolution Emerging?”, Paleobiology, 1980, 6, 119-130).

Stephen J. Gould, The structure of evolutionary theory, Belknap Press – Harvard University Press, Cambridge, Massachussets, 2002.

Pictures at an Exhibition – 1

Travelling in North America, last Tuesday February 11th I visited the San Francisco Asian Art Museum. The museum collection is incredibly diverse and impressive. Selected pictures are shown below, after the video of Alice Sarah Ott playing Modest Mussorgsky’s Pictures at an Exhibition*.

For those who are interested to see the whole series of pictures I took, it is here. Note that some pictures are better than others, since I am not a professional photographer and the pictures were taken with my cell phone camera. Many have explanatory labels, but many have not. Enjoy, but visiting the Museum is very much worthwhile.

*About Mussorgsky’s “Pictures at an Exhibition” music, see here.

A Política Cultural de Adolf Hitler

Durante seu governo, Adolf Hitler objetivou não somente realizar seu projeto político, mas também cultural. Já em 1933 os líderes nazistas empreenderam a sincronização (Gleichschaltung) das organizações profissionais e sociais de ideologia e política nazistas. Joseph Goebbels, ministro do Iluminismo Popular e Propaganda, foi quem coordenou o “alinhamento” do meio artístico e cultural à ideologia nazista, que incluiu o expurgo de judeus e outras pessoas consideradas indesejadas.

Também em 1933 os nazistas e a Associação de Estudantes Nacional-Socialistas Alemães (Nationalsozialistischer Deutscher Studentenbund, or NSDStB) organizaram queimas de livros considerados não-alemães. Obras de Bertolt Brecht, Thomas Mann, Erich Maria Remarque, Franz Werfel, Lion Feuchtwanger e Heinrich Heine, alguns dos autores mais ilustres, foram levadas às chamas.

Ainda em 1933, a Câmara Cultural do Reich (Reichskulturkammer)—que incluía cinema, música, teatro, imprensa, literatura, artes em geral e difusão radiofônica— foi estabelecida para regular todas atividades culturais alemãs. A cultura nazista adotou estilo de realismo clássico, enaltecendo a vida no campo, a família e as comunidades locais, bem como o heroísmo em campo de batalha, a valorização da indústria alemã e a raça ariana. Este conjunto de valores esteve intimamente associado à propaganda nazista, em franca oposição aos movimentos de modernização cultural dos anos 1920-1930.

Em 1937 foi realizada a Exibição da Grande Arte Alemã em Munique, organizada pelo governo. Exibição vizinha também foi organizada, sobre a Arte Degenerada (Entartete Kunst), para mostrar ao povo as “influências nefastas” da arte moderna. O governo alemão incluiu na exposição Arte Degenerada obras de Max Ernst, Franz Marc, Marc Chagall, Paul Klee e Wassily Kandinsky. Ao mesmo tempo, Goebbels ordenou o confisco das obras de autores considerados não-alemães de todos os museus. Muitas obras foram destruídas.

Marc Chagall – The walk

Obras literárias promovidas pelo governo nazista tinham claro conteúdo propagandístico, valorizando a vida no campo e a atuação na guerra. Por outro lado, a Câmara Literária criou listas negras para a eliminação de livros de autores indesejados de todas as bibliotecas públicas. A arte cinematográfica e teatral foi igualmente propagandística por um lado, e por outro destruidora da diversidade cultural, com foco principalmente na eliminação de autores da comunidade judaica. Na música o governo também promoveu a desvalorização de compositores considerados não-alemães, como Felix Mendelssohn e Gustav Mahler. Além disso, foram proibidas apresentações musicais que tivessem distância da cultura nazista, como o jazz.

Os nazistas objetivaram regular, dirigir e censurar manifestações artísticas e culturais que não correspondessem diretamente a seus ideais, de maneira a “formatar” uma nova cultura alemã, que influísse diretamente nas atividades diárias da população. A forma de realização do governo alemão foi através de uma política de terror e convencimento sobre a sociedade.

Os resultados não demoraram a surgir.

Entre janeiro de 1933 e dezembro de 1941, mais de 104.000 refugiados da Alemanha e da Áustria emigraram para os EUA. Nesse contingente, mais de 9.000 eram pesquisadores científicos, artistas jornalistas e intelectuais. Outros emigraram para os Países Baixos, Inglaterra e França. Dentre outros, Max Ernst, Otto Freundlich e Gert Wollheim foram para Paris. Para Amsterdam, Max Beckmann, Eugen Spiro e Heinrich Campendonck. Para Londres, John Heartfield, Kurt Schwitters, Ludwig Meidner e Oskar Kokoschka. Formaram o Coletivo de Artistas Alemães (Paris) e em Londres a Liga de Cultura Alemã. Na Alemanha, artistas como Otto Dix, Willi Baumeister e Oskar Schlemmer realizaram um auto-exílio, isolando-se dos círculos culturais.

Na Inglaterra foi instituído o Britain the Academic Assistance Council, que promoveu o emprego de 524 pesquisadores em cargos acadêmicos em 36 países, 161 dos quais nos EUA. Os Estados Unidos foram os maiores beneficiários do “brain drain” oriundo da Alemanha nazista. Até 1940, somente o periódico Zentralblatt für Mathematik und ihre Grenzgebiete era considerado de bom nível para a publicação de artigos em matemática. Com a tomada do governo pelos nazistas, artigos de pesquisadores judeus passaram a não ser mais referenciados. Com isso, matemáticos americanos criaram a revista Mathematical Reviews, até hoje publicada pela American Mathematical Society. Também, 113 pesquisadores experientes em biologia e 107 em física emigraram para os EUA, e influenciaram diretamente no resultado da II Guerra Mundial.

Foram criadas diversas iniciativas para o apoio financeiro de pesquisadores, escritores, artistas e jornalistas refugiados e/ou judeus. Estas incluíram a Emergency Society of German Scholars Abroad, a Fundação Rockefeller levantou fundos para apoiar intelectuais alemães refugiados, o Emergency Rescue Committee foi estabelecido pela organização American Friends of German Freedom. Grupos de refugiados tiveram o apoio da então primeira dama dos EUA Eleanor Roosevelt.

Apesar do movimento nazista, Pablo Picasso, Henri Matisse, Marc Chagall, Jacques Lipchitz, Amedeo Modigliani, Pablo Casals, André Gide e André Malraux permaneceram em seus países de origem. Artistas que tiveram que fugir clandestinamente para Portugal através dos Pireneus foram André Breton, Marc Chagall, Max Ernst, Lion Feuchtwanger, Konrad Heiden, Heinrich Mann, Alma Mahler-Werfel, André Masson, Franz Werfel e Wilfredo Lam. De Portugal emigraram para os EUA.

Alvin Johnson, professor na New School for Social Research in New York, levou para os EUA Hannah Arendt, Erich Fromm, Otto Klemperer, Claude Lévi-Strauss, Erwin Piscator e Wilhelm Reich. Vários destes editaram a Encyclopedia of the Social Sciences. Laszlo Moholy-Nagy criou uma ramificação da escola de artes Bauhaus em Chicago. Foram criados o Frankfurt Institute na Colombia University e o Erwin Panofsky’s Institute of Fine Arts na New York University, com cargos sendo preenchidos por intelectuais emigrados para os EUA.

Hannah Arendt

Um dos maiores presentes de Hitler para os EUA foi o compositor Arnold Schoenberg, que viveu em Los Angeles até o seu falecimento em 1951. Schoenberg foi professor na University of Southern California e depois na University of California em Los Angeles. Outros compositores como Paul Hindemith, Béla Bartók, Darius Milhaud e Igor Stravinsky também emigraram, além dos músicos Artur Rubinstein, Hans von Bülow, Fritz Kreisler, Efrem Zimbalist e Mischa Elman. Também para Los Angeles ou cercanias foram Thomas Mann, Bertolt Brecht, Lion Feuchtwanger, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Otto Klemperer, Fritz Lang, Artur Rubinstein, Franz e Alma Werfel, Bruno Walter, Peter Lorre, Sergei Rachmaninoff, Heinrich Mann, Igor Stravinsky, Man Ray e Jean Renoir.

A política cultural de Hitler e Goebbels promoveu um desastre na Alemanha da guerra e pós-guerra, inclusive contribuindo para sua própria derrota. Cientistas emigrados da Alemanha e outros países para os EUA trabalharam e contribuíram definitivamente no projeto Manhattan e no posterior desenvolvimento científico norte-americano.

Nota: Durante uma inspeção pelo exército alemão no apartamento de Picasso em Paris, um dos soldados teria visto a obra Guernica, do pintor catalão, e perguntado:

– Você fez isso?

Ao que Picasso respondeu:

– Vocês fizeram.

Guernica, de Pablo Picasso

Fonte: Peter Watson, The Modern Mind, Perennial, 2000.

Evolucionismo versus DI: réplica a Eberlin – Ser ou Não Ser: Eis a Questão

O texto a seguir foi publicado no Blog UNESP Ciência, à ocasião sob a organização de Maurício Tuffani. Como o Blog UNESP Ciência foi desativado, a reprodução desse texto encontra-se na página do Facebook da Sociedade Racionalista. Neste sábado 8/2/2020 a Folha de São Paulo publicou na seção Tendências e Debates opiniões opostas sobre o Design Inteligente, uma do Professsor de Biologia da USP Diogo Meyer, e outra de Marcos Eberlin do Mackenzie.

Aproveito a ocasião para aqui republicar meu texto de 2013.

Ser ou não ser: eis a questão

O texto “O Design Inteligente e a volta à causa certa“, publicado pelo professor Marcos Nogueira Eberlin no Blog Unesp Ciência, ilustra muito bem como o argumento dos membros do movimento do Design Inteligente se constrói não em cima de argumentação lógica, mas sobre falácias extremamente enviesadas.

“Seguir os dados aonde quer que nos levem”, como diz o professor, é uma premissa básica para o entendimento dos processos naturais. Porém, dados, por si só, não dizem nada. Em primeiro lugar, dados [experimentais] são coletados e organizados. E, por isso, já sofrem interferência durante esse processo. Dados brutos podem até ser obtidos, mas na grande maioria das vezes são refinados, pois de outra forma dificilmente se tornam compreensíveis. E, para serem compreendidos, precisam ser analisados e interpretados.

Como especialista em espectrometria de massas, Eberlin sabe muito bem o que está sendo dito aqui. Não é possível interpretar dados de espectros de massas sem levar em conta a teoria da mecânica quântica, que explica o comportamento dos átomos e das moléculas. Também não é possível interpretar espectros de massas de amostras de má qualidade, mal preparadas ou mal coletadas. Esse tipo de análise requer muitos cuidados e manipulação, ajustes de equipamento, zelo na manipulação de amostras, para que se obtenham dados que possam ser interpretados e fornecer informações que “digam algo”. As premissas científicas para a análise de espectros de massas são exatamente as mesmas para a análise dos fatos que explicam a evolução biológica.

Sendo assim, quando Eberlin afirma que devemos “interpretar dados livres de qualquer amarra, pré-conceito ou predefinição, livres do ‘pacto’ pós-medieval iluminista que fizeram com o materialismo científico e que nos constrange quanto ao que devemos ou não concluir”, está ele, sim, se divertindo com um exercício de retórica absolutamente vazia e desprovida de qualquer sentido, pois ele próprio, Eberlin, faz uso de todas as premissas científicas em seu trabalho que diz que devemos negar para entendermos o Design Inteligente, em detrimento da evolução biológica.

A ciência se construiu em cima de fundamentos, e não por um viés particular. Não fosse assim, a mesma ciência que explica a fragmentação de moléculas em espectrometria de massas não explicaria o comportamento das moléculas em reações químicas, ou ainda nas células de organismos vivos. O fundamento científico é o mesmo para a física, biologia e para a química. Os princípios que regem o comportamento das moléculas nas reações químicas in vitro são exatamente os mesmos que regem o comportamento de moléculas in vivo.

Por isso, causa espanto o juízo de valor negativo implícito na afirmação de Eberlin de que a ciência e o método científico são fruto de um pacto, uma vez que, de fato, a ciência se constrói sobre entendimentos que podem nem sempre ser consensuais, mas que, no entanto, pressupõem um consenso metodológico em torno da experimentação, reprodutibilidade e falseabilidade.

Contudo, uma teoria construída por sobre fatos, passados e presentes, que interpreta os fatos e provê uma explicação para os mesmos, se mostrará válida até que outra, melhor, a substitua. E Eberlin também sabe disso, particularmente no que se refere à história da química, na qual teorias sucederam-se umas às outras, mas somente a partir dos momentos em que as inválidas, ou parcialmente válidas, não puderam explicar senão particularidades, e não generalidades.

O problema do Design Inteligente é não explicar generalidades e tentar explicar apenas particularidades. Ao se justificar em cima de flagelos, olhos e ratoeiras, o DI mostra sua limitação conceitual, que não se sustenta como arcabouço teórico. Logo, não é teoria. Como são detectados “sinais claros de inteligência no universo e na vida”? Partindo de premissas falsas, como a “complexidade irredutível” e a “informação complexa especificada”, termos criados para explicar os mesmos flagelos, olhos e ratoeiras, mas deixando de lado a mensurabilidade da escala do tempo, das taxas de variações (ou mutações), a ocorrência de mudanças ambientais significativas e a filogenia dos seres vivos, amplamente demonstrada pelas técnicas de biologia molecular? O que é, afinal de contas, o “design”? E, no contexto deste, o que seria exatamente um “design inteligente”? Tais definições seriam muito bem-vindas, já que o DI busca explicar apenas o que parece ser visível, mas não as verdadeiras razões pelas quais se mostra o que é visível.

Ao afirmar sobre a impossibilidade da evolução química, Eberlin tenta fazer uso de premissas científicas, e se contradiz por querer, como diz anteriormente, utilizar tais premissas sem amarras. Porém, Eberlin confunde evolução com seleção natural, pois evolução implica em variação, mudança e adaptação, tendo por base a seleção natural. Substâncias podem sofrer evolução se estiverem em organismos vivos. A presença, ou ausência, de determinados compostos químicos em certos indivíduos irá favorecer (ou não) indivíduos de uma população que, frente a determinadas condições ambientais, serão mais ou menos aptos a gerarem prole melhor adaptada, e essa população será favorecida ou não. Logo, a evolução química é possível porque ela faz parte dos indivíduos de populações que transmitem os sistemas bioquímicos gerações após gerações. Sendo assim, os sistemas químicos de seres vivos também são passíveis de sofrer evolução, não por si só, mas como componentes de um sistema vivo.

Portanto, ao afirmar

“É porque sei que a evolução química é impossível que eu a refuto”,

Eberlin, na verdade, demonstra não ter compreendido os princípios básicos do processo da evolução biológica. Também ao afirmar que “evolucionistas (…) assumem que tudo é matéria e energia e, assim, guiados por este pré-conceito, necessariamente concluem o inevitável: a evolução ocorreu”, Eberlin se esquece que a teoria da evolução prescinde de tais “pré-conceitos”. Isso porque a teoria da evolução se fundamenta em observações e fatos, e não em uma premissa de que tudo é matéria e energia. Não somente os achados de Darwin, mas toda a pesquisa em biologia evolutiva feita ao longo de 150 anos, se fundamenta em observações e fatos. O mecanismo da evolução ainda é tema de debates, assim como muitos mecanismos de reações orgânicas, como Eberlin bem sabe. E nem por isso se questiona a validade das teorias que explicam o comportamento dos átomos e das moléculas, como Eberlin também está ciente. A ciência que explica as moléculas, os átomos, as reações químicas, é a mesma ciência que explica a teoria da evolução.

Ironizar o arcabouço teórico da ciência como “pré-conceito chique e perfumado” é o mesmo que cuspir no prato em que Eberlin come todos os dias, sobre o qual construiu seu Currículo Lattes. Como o internauta Gato Pré-cambriano bem disse, infelizmente moléculas não falam. Se falassem, nossa vida de químicos seria bem mais fácil, porém muito mais sem graça. Basicamente, não teríamos mais trabalho, pois as moléculas nos explicariam tudo. E, no entanto, os químicos ainda aí estão, trabalhando arduamente para compreender processos químicos, sejam em sistemas vivos ou não. Quer queiramos ou não, as “explicações filtradas pelo materialismo filosófico” são as que melhor descrevem o mundo à nossa volta. Afinal, porque exatamente o Design Inteligente tem a resposta correta?

Se, como o próprio Eberlin diz,

“Vamos seguir os dados onde quer que nos levem! E vamos interpretá-los, livres de qualquer amarra, pré-conceito ou predefinição”,

isso faz com que os próprios argumentos do Design Inteligente sejam passíveis de escrutínio e análise, questionamento e reflexão. E, como já demonstrado em livros e mais livros, além de artigos científicos, o DI não consegue sustentar suas premissas pelo fato de não serem verificáveis, tampouco falseáveis. Logo, não são científicas. E, consequentemente, não são adequadas para explicar o mundo natural. Embora Karl Popper possa, evidentemente, ser questionado, como já o foi, ainda é seriamente considerado por filósofos da ciência como propositor de uma metodologia moderna de verificação do que pode certamente ser confirmado. Evidentemente que a proposição popperiana pode ser mandada às favas. Nada nos impede. Porém, ao levar em conta as conseqüências de análises e interpretações errôneas dos fatos naturais, é melhor ponderar com cuidado o que significa mandar a proposição de Popper às favas. Afinal, explicar para um doente que sua doença é “fruto de um Design Inteligente”, e não de uma causa genética, pode não ser mais satisfatório nos dias atuais. Ao advogar que somente o Design Inteligente possui a resposta certa, Eberlin confirma, de maneira enfática, no que constitui o arcabouço ideológico do DI: o dogma. Não há questionamento, não há discussão.

O Design Inteligente é um fracasso científico porque não conseguiu explicar nada de maneira definitivamente convincente, com experimentos verificáveis e falseáveis. Também é um fracasso científico porque se fundamenta na premissa teleológica. Ou seja, a de que estruturas “irredutivelmente complexas” só poderiam ter surgido como fruto de um planejamento e, desta forma, com um propósito definido. Como bem se sabe, flagelos, olhos, DNA, e outras estruturas “irredutivelmente complexas” não são fruto de um planejamento inteligente, e sim da evolução biológica que faz com que flagelos sirvam a múltiplas funções, que faz com que existam cegos, míopes, hipermétropes, sofredores de glaucoma e catarata, e que existam tantos defeitos no DNA, que faz com que a principal doença causa de morte de humanos no mundo seja decorrente de defeitos do DNA: o câncer.

Tentar explicar a origem da vida pelo Design Inteligente é apelar para a ignorância e para a preguiça, a entrega ao inevitável desígnio do sobrenatural, que “consegue explicar o que ainda não conseguimos”. É muito cômodo. É muito pouco. Se códigos (genéticos, do DNA) fossem imutáveis, não existiriam as mutações genéticas. Sorry, Eberlin, mas sua retórica estacionou no século 19. Ao afirmar que o Design Inteligente quer “soltar a perna da ciência”, Eberlin é redundante, pois o DI nunca esteve preso à ciência, mas sim à ideologia teleológica de orientação teísta, que não explica nem justifica nada, apenas joga um pano preto por sobre as evidências.

Como Eberlin bem sabe, os cientistas não necessitam do Design Inteligente para rever seus pressupostos e ser um pouco mais autocríticos. Afinal, fazemos isso todos os dias, ao discutirmos com colegas, na sala de aula, na orientação de alunos de pós-graduação, ao ler artigos e livros científicos que apresentam novas formas de enxergar as informações que coletamos. O que seria da espectrometria de massas se estivéssemos ainda utilizando somente ionização por impacto de elétrons? Graças à ciência e ao método científico, hoje entendemos mais, e cada vez melhor, o mundo à nossa volta.