O Financiamento da FAPESP e o combate à pandemia da COVID-19

A importância da ciência para o combate à COVID-19 é fruto de uma das maiores realizações da humanidade: a construção do conhecimento. Essa construção foi possível pelo trabalho conjunto de cientistas e pelo apoio da sociedade, principal beneficiária dos avanços científicos.

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) foi estabelecida com as mesmas premissas, de fomentar o desenvolvimento científico, em prol da sociedade paulista. Prevista na Constituição de 1947 do Estado, foi criada em 1960 e estabelecida em 1962. Desde seu início, a FAPESP objetiva apoiar a pesquisa científica e tecnológica através de auxílios à pesquisa e bolsas de estudo.

O bom gerenciamento de recursos pela FAPESP permite financiar projetos com pesquisadores brasileiros de diferentes áreas atuando na fronteira do conhecimento. A constituição do Estado de São Paulo de 1989 determinou 1 % da receita tributária como orçamento anual da FAPESP. Deste montante, a Fundação destina somente 5% do orçamento para despesas de administração. Em 2019, 35,5% dos dispêndios da Fundação foram destinados a projetos que originam novas ideias e contribuem para o progresso científico. Pesquisas com potencial para inovação de produtos e processos e aumento da competividade econômica foram 57,7% dos dispêndios. Vários projetos financiados pela FAPESP resultam em impacto social, pois contribuem para o bem-estar e a qualidade de vida da população, para diminuir as desigualdades e colaborar no estabelecimento de políticas públicas.

Em 1997, o projeto Genoma FAPESP levou só dois anos para concluir o sequenciamento genético da bactéria Xyllela fastidiosa, responsável pela doença “amarelinho” que ataca a citricultura brasileira. Cientistas brasileiros assimilaram a expertise para sequenciamento genético, com protagonismo no diagnóstico de doenças raras. O genoma do vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, foi sequenciado em tempo recorde por pesquisadores apoiados pela FAPESP. Pesquisadores do estado de São Paulo, financiados pela FAPESP, participam de estudos de fase clínica 3 de vacinas para a COVID-19, em parceria com instituições do exterior. Outros projetos objetivam prevenção, diagnóstico e tratamento da COVID-19. Respiradores e Tomógrafos de impedância elétrica resultam de financiamentos do programa FAPESP de apoio à Pesquisa Inovadora em Pequenas Empresas (PIPE), já sendo utilizados em diversos países para a recuperação e monitoramento pulmonar contínuo em pacientes graves por método não-invasivo.

O Programa BIOEN, para pesquisa de biocombustíveis, realizou o mapeamento de 99% do genoma da cana-de-açúcar em 2019 participando de consorcio internacional, com financiamento da FAPESP. Os resultados viabilizam processos biotecnológicos de melhoramento genético para incrementar a produção de açúcar, etanol e de insumos químicos de fonte renovável. O programa BIOTA, de pesquisas relacionadas à biodiversidade, levou ao estabelecimento de diversas políticas públicas que subsidiaram a legislação atual do estado para conservação da biodiversidade. Programas em áreas estratégicas mais recentes são o de eScience e DataScience e o de Mudanças Climáticas.

Programas de pesquisa com empresas, como os de Pesquisa Inovadora em Pequenas Empresas (PIPE), Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) e os Centros de Pesquisa em Engenharia/Centros de Pesquisa Aplicada (CPE/CPA), são de interesse para o setor industrial. Vários desses projetos são realizados com empresas do setor automotivo, farmacêutico, petrolífero, de cosméticos, agronômico, sucro-alcooleiro, de informática e de inteligência artificial.

Grande parte dos pesquisadores diretamente envolvidos nos projetos financiados pela FAPESP são estudantes de graduação, pós-graduação e pesquisadores de pós-doutorado. A FAPESP financia bolsas de estudo para a formação desses pesquisadores, que serão profissionais altamente capacitados para o setor produtivo e acadêmico. Em 2019, a FAPESP investiu 30% de seu orçamento em bolsas de estudo, atribuídas em processo de rigorosa seleção. Tanto para bolsas de estudo como para auxílios à pesquisa o compromisso financeiro é integral. Uma vez aprovado o projeto, a FAPESP cumpre seu financiamento, baseado em relatórios anuais de desempenho. Projetos de sucesso têm compromissos de 1 a 11 anos, o que garante a realização de pesquisa ousada, bem estruturada e conduzida, que traz resultados relevantes para a ciência, para a economia e para a sociedade.

Próxima a completar seus 60 anos, a FAPESP demonstra ser possível o financiamento de pesquisas que trazem inúmeros benefícios, não somente para São Paulo, mas para todo o Brasil e outros países. Um eventual corte de 30% do orçamento da FAPESP para 2021, previsto no PL-627, anexo IX, página 395, comprometeria quase que irreversivelmente o apoio futuro da FAPESP a projetos científicos, tecnológicos, em parceria com empresas, muitos dos quais voltados para a saúde pública, já em andamento. A sociedade que contribui de maneira decisiva para o funcionamento da FAPESP é diretamente beneficiária dos resultados dos projetos financiados. E a sociedade espera que problemas difíceis de serem solucionados, como o da COVID-19, possam ser cada vez melhor enfrentados e solucionados, com o preparo e o conhecimento dos pesquisadores de São Paulo. A não-aprovação da emenda do PL-627, que leva ao confisco de 30% da receita da FAPESP para 2021, constitui comprometimento da Assembleia Legislativa em manter os recursos da FAPESP, agência de fomento imprescindível para o desenvolvimento do estado de São Paulo e do Brasil.

O USP Talk dos Profs. Glaucius Oliva e Carlos Henrique de Brito Cruz

Em 1 de setembro de 2020, o USP Talks promoveu debate com os Professores Glaucius Oliva e Carlos Henrique de Brito Cruz. Mediado pelo jornalista Herton Escobar, o debate intitulado O futuro da ciência no Brasil – desafio e oportunidades, tem até agora mais de 3.500 visualizações no YouTube. Herton Escobar mencionou a grande participação da comunidade acadêmica durante o debate, o que mostra o interesse e a preocupação sobre o assunto.

O debate – de excelente qualidade – trouxe vários elementos à discussão, como a priorização da pesquisa, a importância do financiamento e da organização das atividades de pesquisa no Brasil e o engajamento dos pesquisadores na defesa da ciência.

Penso que o debate entre os Professores Glaucius e Brito Cruz é, não apenas, importante em si. O tema e questões levantadas também deveriam ser discutidos pela comunidade acadêmica, pois traz muitos pontos importantes. Por exemplo, sobre o financiamento da ciência, que no Brasil atual passa por um momento extremamente crítico. Infelizmente, vários pesquisadores argumentam que as universidades e a pesquisa deveriam ser principalmente financiadas por doações e pela iniciativa privada. Mesmo sabendo que em todos os países com um sistema de ciência minimamente bem estruturado, a maior parte do financiamento da pesquisa científica é feita pelo Estado.

De minha parte, aqui faço minha contribuição em 3 pontos.

Primeiro, a motivação do desenvolvimento da ciência no século 20, principalmente após a 2ª guerra mundial. De fato, a guerra teve sua importância como elemento impulsionador, principalmente pelas inúmeras inovações durante a guerra e delas decorrentes. Mas deve-se atentar que a parte mais importante do desenvolvimento científico do século 20 teve seu estímulo mais importante no século 19, decorrente da teoria da evolução de Darwin (1809-1882), dos avanços da química e física e das descobertas da medicina em conjunto com as descobertas microbiológicas de Pasteur (1822-1895).

A teoria da evolução abriu um universo de questionamentos sobre os processos de hereditariedade e adaptação, que levaram Mendel a propor suas ideias, ainda que reconhecidas tardiamente. O maior entendimento do processo de hereditariedade decorrente da teoria de Darwin levou a uma das maiores descobertas do século 20, que foi da estrutura do DNA. E todas as implicações desta descoberta.

No que se refere à física e à química, os avanços das indústrias de metalurgia e química no século 19, com uma demanda de produtos cada vez maior, fez com que os pesquisadores buscassem entender cada vez melhor a estrutura da matéria, de conhecimento ainda muito escasso no século 19. A conceituação da estrutura do átomo de Dalton (1766-1844) e Thomson (1856-1940) estava longe de ser satisfatória, e não explicava o comportamento das conexões entre os átomos, as ligações químicas. Havia uma grande necessidade de melhor se compreender a estrutura da matéria para que os processos de manufatura química pudessem ser mais bem controlados, incluindo a manipulação de vários materiais, síntese orgânica e os processos bioquímicos (vários relacionados às doenças). A proposta do átomo de Rutherford (1871-1937) e a descoberta da emissão radioativa por Marie Curie (1867-1934) representaram um novo ponto de partida, sobre o qual a teoria quântica se fundamentou. Max Planck (1858-1947), Albert Einstein (1879-1955), Lise Meitner (1878-1968), Niels Bohr (1885-1962), Erwin Shrondinger (1887-1961), Max Born (1882-1970), Louis de Broglie (1892-1987), Wolfgang Pauli (1900-1958), Werner Heisenberg (1901-1976), Paul Dirac (1902-1984) e John von Neumann (1903-1957) são os principais nomes daqueles que elaboraram um novo modelo para o entendimento das menores partículas da matéria. A teoria quântica praticamente se consolidou com bastante antecedência à 2ª Guerra, permitindo a Linus Pauling (1901-1994) propor o modelo atual de ligações químicas em 1931, em seu livro “The Nature of the Chemical Bond”. A grande maioria das maiores descobertas científicas posteriores foi essencialmente fundamentada levando-se em conta a estrutura dos átomos e das moléculas, exceção feita à economia, à qual também é concedido prêmio Nobel.

Fotografia de participantes da 1a Conferência Solvay, considerada o primeiro encontro científico formal da história. De pé, da esquerda para a direita: Robert Goldschmidt, Max Planck, Heinrich Rubens, Arnold Sommerfeld, Frederick Lindemann, Maurice de Broglie, Martin Knudsen, Friedrich Hasenöhrl,  Georges Hostelet, Edouard Herzen, James Hopwood Jeans, Ernest Rutherford, Heike Kamerlingh Onnes, Albert Einstein, Paul Langevin. Sentados, da esquerda para a direita: Walther Nernst, Marcel Brillouin, Ernest Solvay, Hendrik Lorentz, Emil Warburg, Jean Baptiste Perrin, Wilhelm Wien, Marie Curie, Henri Poincaré.

Segundo, ao contrário do senso comum vigente no meio acadêmico, o progresso da ciência só foi possível em decorrência de mudanças sociais significativas. Se tomarmos como ponto de partida a época do Renascimento, o surgimento de mecenas em vários países como a Itália, França, Alemanha, Holanda e Portugal possibilitou a inventores trazerem suas ideias para a sociedade, a começar pelas naus que permitiram viajar pelo mundo e descobrir outros países. Acrescente-se instrumentos para medição do tempo e distância, lentes, máquinas de guerra (algumas já conhecidas na China), os primeiros tratados de anatomia e fisiologia e os primeiros experimentos de física. Sem o financiamento de mecenas, tais invenções não teriam sido possíveis, inclusive as de Leonardo da Vinci, que, ironicamente, nunca saíram do papel. Tal situação perdurou desde o século 16 até praticamente o século 19, e durante este período de mais de 300 anos o avanço da ciência foi lento, muito lento.

Ganhou um pouco mais de impulso com os iluministas no fim do século 18 e com o surgimento dos primeiros governos democráticos, primeiramente nos EUA e depois na Europa.

A grande maioria dos inventores e pesquisadores entre os séculos 16 e 19 eram pessoas de famílias abastadas, que podiam se permitir dedicar-se à pesquisa e às suas invenções. Para citar apenas alguns dos mais famosos dos séculos 17 e 18, o químico Robert Boyle (1627-1691), o biólogo Marcello Malpighi (1628-1694), o biólogo John Ray (1628-1705), o matemático e astrônomo Christiaan Huygens (1629-1695), o físico Issac Newton (1642-1727) e o matemático Gottfried Leibniz (1646-1716) eram de famílias ricas. A maioria dos membros das sociedades científicas não era de cientistas, e sim de aristocratas que buscavam prestígio social. Assim foi o caso quando da criação da Royal Society of London (1662), fundada não por um cientista, mas pelo monarca Carlos II. A Académie des Sciences (1666) era frequentada por Luis XIV e membros da monarquia com assiduidade, nenhum dos quais era cientista. Os filósofos naturais mais conhecidos do século 18 não chegavam a 25, incluindo Benjamin Franklin (1706-1790), Carolus Linnaeus (1707-1778), Erasmus Darwin (1731-1802), avô de Charles Darwin, Cavendish (1731-1810), Priestley (1733-1804), Coulomb (1736-1806) e Lavoisier (1743-1794).

Até cerca de meados do século 20 muita pouca gente tinha acesso à educação formal. O amadurecimento dos sistemas de governo e de contrato social foram aos poucos se aprimorando e oferecendo melhores oportunidades de ensino e educação para parcelas da população menos rica. Este também foi um processo muito lento, mas que, uma vez estabelecido por demanda da sociedade, permitiu a expansão do conhecimento em suas várias esferas. Sendo assim, na verdade, um dos principais fatores que permitiu o avanço do conhecimento e da ciência foi o estabelecimento de sistemas políticos e sociais cada vez melhores, que permitiram melhores condições de vida e educação, ampliando o acesso da sociedade aos sistemas de educação e formação profissional. E não o contrário.

Finalmente, a grande questão do momento, sobre estabelecer prioridades para o financiamento da pesquisa, é uma questão complexa, bem complexa. Existe um grande volume de literatura sobre esse assunto, que mereceria ser mais bem conhecida de maneira a melhor fundamentar esse debate tão necessário.

O debate promovido pelo USP Talks entre os Professores Glaucius Oliva e Brito Cruz deveria ser apenas o ponto de partida para uma reflexão mais ampla e profunda por parte dos acadêmicos e suas instituições, além da sociedade como um todo, sobre um assunto essencial: afinal, qual é o valor que a ciência tem no mundo de hoje?