O texto a seguir foi originalmente publicado no blog “Química de Produtos Naturais” em 3 de junho de 2010.
O termo “complexidade irredutível” foi criado por Michael Behe (Behe, 1996) para designar estruturas ou sistemas biológicos formados por componentes essenciais para o funcionamento íntegro destas estruturas ou sistemas. A ausência de um único componente destes não permitiria que estes fossem operacionais. Como exemplos, Behe indica o flagelo bacteriano, os ciclos bioquímicos (o Ciclo de Krebs, o Ciclo de Calvin, etc.), o olho, o DNA e o cérebro. Segundos Behe, tais estruturas ou sistemas não poderiam ter surgido gradualmente, como indica a teoria da evolução, através de mudanças gradativas. Logo, seriam objeto de um “design”.
De acordo com a proposta do Movimento do Design Inteligente (MDI), um “designer inteligente” teria criado milhões de linhagens de bactérias com flagelos, de uma só vez. Todavia, estudos genéticos, fisiológicos e anatômicos indicam que os flagelos surgiram ao longo da evolução a partir de um ancestral comum. Para muitos tipos de bactérias a função primária dos flagelos é a excreção, e não propulsão. Para outras bactérias, o flagelo é utilizado para que a bactéria possa aderir a uma superfície, ou a outras bactérias (Aizawa, 2001). Flagelos foram tornando-se cada vez mais complexos ao longo da evolução. Por exemplo, em Archea (bactérias primitivas) 18 a 20 genes são necessários para o desenvolvimento de um flagelo de 2 partes, utilizado principalmente para excreção e adesão. Na bactéria Campylobacter jejuni são necessários 27 genes para a formação de um flagelo já envolvido em atividades motoras. Na bactéria Escherichia coli são necessário 44 genes para a formação de um flagelo que atua para o movimento coordenado da bactéria. Ou seja, o processo evolutivo é claro. Não há design inteligente (http://www.newscientist.com/article/dn13663-evolution-myths-the-bacterial-flagellum-is-irreducibly-complex.html ). Ver também Liu e Ochman (2007).
Apesar disso, Behe, em seu recente “The Edge of Evolution”, insiste que um “designer inteligente” interveio no processo evolutivo de maneira a produzir as formas de vida que se conhece, que não podem ser fruto do acaso ou de mutações aleatórias (Behe, The Edge of Evolution). Entretanto, Behe não faz juz ao conceito de forma correta, pois a diversidade de formas não é gerada por mutações aleatórias e sim pelo processo de seleção natural. Muito embora mutações genéticas sejam aleatórias, a seleção natural não o é. Resulta da interação dos indivíduos de uma espécie com outras espécies e com o ambiente natural.
William Dembski então argumenta que, na improbabilidade da ação do acaso, a ação do “design” seria a única forma do aparecimento da diversidade biológica. Dembski não consegue fazer a distinção entre puro acaso e processos contingentes da evolução. Ao ilustrar a Teoria da Evolução de maneira reducionista e mecânica, tanto Behe quanto Dembski alegam que a evolução orgânica dependeria de puro acaso, o que seria totalmente implausível. Com isso, só um “design inteligente” justificaria o aparecimento de estruturas e sistemas biológicos “irredutivelmente complexos”. De acordo com Dembski, “O que as leis físicas não conseguem explicar é como produzir contingência (…). Se esta não surge como resultado das leis naturais, então como surge a contingência? Somente duas respostas são possíveis: ou a contingência é cega e sem propósitos, e resulta do puro acaso, ou é um processo guiado, com um propósito, fruto de uma causa inteligente (Dembski, Intelligent Design, 165). O que Dembski faz questão de não mencionar é que a contingência opera ao longo de processos estabelecidos do ponto de vista histórico e estrutural.
A abordagem de Behe e Dembski é fundamentalmente reducionista e mecânica, e não leva em consideração o desenvolvimento dinâmico e as interações que ocorrem na natureza. Desta forma, estruturas e sistemas que superficialmente podem parecer “irredutivelmente complexos” são, na verdade, fruto de um processo extremamente complexo de interações. Os primeiros estágios do surgimento de tais estruturas e sistemas é o ponto chave para o entendimento de como se desenvolvem de formas menos complexas para mais complexas. Como o processo de seleção natural não tem um propósito ou destino, pois não existe um objetivo evolutivo, o processo da seleção natural apenas preserva as mutações aleatórias que promovem vantagens adaptativas.
O desenvolvimento do olho é um bom exemplo de como isso ocorreu. Olhos primitivos ainda existem, hoje, em vermes, que detectam apenas variações de intensidade de luz e se orientam de acordo com estas variações. Ora, se, por um acaso, uma mutação faz com que indivíduos que detectam apenas intensidade de luz passem a detectar movimento, ou uma gradação de cores, terão adquirido uma ligeira vantagem adaptativa sobre aqueles indivíduos que não têm esta capacidade. Assim, 1% de visão é melhor que a cegueira total, e 6% é melhor do que 5%, e 10% é melhor do que 6%. O desenvolvimento do olho, de maneira gradual, não somente é perfeitamente plausível como foi verificada pela análise filogenética molecular. Os genes que codificam para a formação e o funcionamento dos olhos de humanos, polvos, sapos, insetos e crustáceos são essencialmente os mesmos, tendo surgido há aproximadamente 600 milhões de anos (Carl Zimmer, Evolution, Harper Collins Publishers, New York, 2008, p. 128).
Uma explicação diferente para o surgimento de estruturas e sistemas aparentemente “irredutivelmente complexos” foi fornecida pelo falecido biólogo Stephen Jay Gould. De acordo com Gould, quando se originaram, tais estruturas e sistemas não teriam uma função definida. A função seria definida ao longo da história evolutiva à qual tais estruturas e sistemas fossem submetidos. Gould argumenta que os organismos vivos não são apenas resultado de influências do ambiente, mas também de sua integridade estrutural, que limita e direciona a variação através da qual opera a seleção natural (Gould, 2002). Desta forma, a evolução não seria isotrópica, igual em todas as direções. Embora mutações produzam variação genética de maneira aleatória, sem necessariamente promover vantagens adaptativas, tal processo não estabelece que as variações na forma (fenotípicas) não possam ter uma direção preferencial. O desenvolvimento estrutural de um organismo ao longo de sua vida limita a variação fenotípica que será possível apresentar, pois mudanças surgidas em um determinado estágio determinarão as mudanças possíveis em um estágio posterior. Assim, mudanças estruturais em determinadas características de um organismo irão influenciar na estrutura e funcionamento do organismo como um todo. Tais informações são transmitidas geneticamente de geração para geração, e não permitem modificações por demais significativas. Ou seja, o processo evolutivo resulta de um processo dialético entre “o interno” (que seriam restrições estruturais herdadas geneticamente) e “o externo” (pressões seletivas ambientais), de maneira análoga à ontogenia (desenvolvimento ao longo da vida) dos indivíduos, que resultam de interações dialéticas entre seus genes e o ambiente. Gould define um organismo vivo como sendo “uma entidade integrada exercendo restrições sobre sua história, ao mesmo tempo em que se situa em um ambiente específico” (Gould, 1980).
Gould confessa que esta idéia foi exposta por Darwin. Naturalistas do século XIX adotaram duas possíveis abordagens para explicar a evolução: funcionalista (Darwin, Lamarck e Cuvier) e formalista, ou estruturalista (Saint-Hilaire, Owen e Goethe). Os funcionalistas diziam que as características dos organismos existiam por razões de utilidade; já os formalistas enfatizavam a unidade estrutural comum entre organismos aparentados. Os formalistas negavam a possibilidade da evolução, pois acreditavam que somente modificações superficiais eram possíveis. Membros do MDI como Benjamin Wiker e Jonathan Witt tomaram emprestados os argumentos dos formalistas para justificar a ação de um “designer”.
No entanto, os argumentos dos formalistas foram postos por terra por Darwin e outros, que comprovaram que estruturas biológicas também estão sujeitas ao processo evolutivo, embora de forma limitada devido às suas características inerentes. Sendo assim, Darwin promoveu uma quebra do paradigma no debate funcionalista-formalista, adicionando uma nova dimensão: o fator histórico. Contudo, os membros do MDI não perceberam (ou não quiseram perceber) tal mudança neste debate, e se ativeram aos argumentos formalistas.
Um outro conceito introduzido por Gould (e Elisabeth S. Vrba) é o conceito de exaptação. Exaptação é a utilização de uma característica existente para um novo propósito funcional (Gould e Vrba, 1982). Tal característica pode tanto se originar através da seleção natural para propósitos adaptativos, na qual a derivação para um novo propósito representa uma variação funcional, ou tal característica pode ser um spandrel (termo definido como uma característica fenotípica que é um produto secundário da evolução de outra característica, em vez de ser um produto direto da seleção adaptativa) que não teria surgido através da adaptação, mas como um efeito estrutural co-lateral. Artigo recentemente divulgado pelo Boletim da Agência FAPESP traz um exemplo de exaptação: a dormência de sementes de determinadas árvores não teria surgido para superar uma deterioração fisiológica das mesmas, mas adquiriu esta função ao longo do tempo (Fabio de Castro, “Esperteza vegetal”, Boletim Agência FAPESP, 19/4/2010).
A mente humana seria um exemplo contundente de exaptação, e não de “complexidade irredutível”, pois claramente é produto de um longo processo evolutivo, no qual aqueles indivíduos que tiveram suas capacidades mentais aguçadas adquiriram vantagens adaptativas e deram origem ao Homo sapiens. A capacidade de ler, de escrever, de apresentar conceitos matemáticos extremamente complexos e criar obras de arte não teve papel na origem da mente. Estruturas complexas, como a mente, são inerentemente cheias de potencial e apresentam inúmeras propriedades emergentes. Tais estruturas frequentemente podem assumir funções outras do que aquelas para as quais a seleção natural as fez prevalecer. Quando compreendemos tais explicações, e podemos apreciar o significado dos “spandrels” e da exaptação, os argumentos do design inteligente se desintegram e a origem física da vida se torna aparente. Edward O. Wilson considera que até mesmo a cultura seja um produto de seleção natural (E. O. Wilson, Consciliência, p. 119-130).
Uma vez proposto o conceito de exaptação por Gould, este também pôde ser utilizado para explicar a evolução do flagelo bacteriano (Pallen e Mtazke, 2006). Como mencionado na postagem anterior sobre este assunto, flagelos de diferentes linhagens bacterianas exerceram funções diferentes. Assim, uma explicação meramente funcionalista e teleológica, que visa justificar o flagelo como um órgão responsável pelo movimento de bactérias, não se sustenta. Os elementos chave para a formação do flagelo resultam da exaptação de “formas flagelares” que surgiram (através da evolução) por outras razões.
Na natureza existem muitas estruturas que podem dar origem a sistemas ordenados e complexos através da seleção natural. O surgimento de tais estruturas são direcionadas por princípios físicos, químicos e matemáticos. D’Arcy Wentworth Thompson foi um dos biólogos pioneiros a argumentar sobre a ocorrência repetitiva de formas ordenadas, como espirais (em conchas e chifres de carneiros, por exemplo) e hexágonos (colméias de abelhas e estruturas de corais). Biólogos aceitam que a forma esférica das células, por exemplo, não seja resultante de uma informação genética e sim tenha origem em forças puramente físicas. Stuart Kauffman argumenta que o que se considera “ordem” na natureza surge naturalmente através da emergência de sistemas complexos (Kauffman, 1993). Kauffman sugere que a diversidade das células presentes nos organismos vivos não resulta somente de um processo histórico, mas seria resultante de princípios auto-organizacionais de sistemas dinâmicos. Tal ordenação seria produzida através de um processo completamente natural através da interação de várias forças e processos que originam uma estrutura emergente. A organização cria um potencial para a emergência de novas formas de organização, novas formas de vida, novas funções e comportamentos, impossíveis em formas menos organizadas. A ordem espontânea que emerge em sistemas complexos pode prover estruturas iniciais de formas orgânicas sobre as quais atua a seleção natural.
A tradição estruturalista (formalista) da Biologia explica a emergência de características altamente complexas, que podem parecer “irredutivelmente complexas” à primeira vista. A combinação do estruturalismo com a dialética é a chave para entender o processo evolutivo e o desenvolvimento das formas biológicas que conhecemos. As leis naturais e as contingências históricas explicam a complexidade na natureza, deixando completamente de lado a necessidade de um “designer”.
Bibliografia consultada
Andrew J. Petto and Laurie R. Godfrey, Scientists Confront Creationism – Intelligent Design and Beyond, W. W. Norton & Co., 2007.
E. O. Wilson, Consciliência, Editora Campus, 1998.
J. B. Foster, B. Clark, R. York, Critique of Intelligent Design, Monthly Review Press, New York, 2008.
Lynn Margulis and Dorion Sagan, What is Life?, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 2000.
M. Behe, Darwin’s Black Box, Free Press, New York, 1996.
Mark J. Pallen & Nicholas J. Matzke, From The Origin of Species to the origin of bacterial flagella, Nature Reviews Microbiology 2006, 4, 784-790).
Michael Shermer, Why Darwin Matters, Owl Books, , New York, 2006.
Niall Shanks, God, the Devil and Darwin, Oxford University Press, 2006.
R. Liu e H. Ochman, Stepwise formation of the bacterial flagellar system, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, volume 104, páginas 7116-7121, 2007.
S. A. Kauffman, The Origins of Order: Self-organization and Selection in Evolution, Oxford University Press, New York, 1993).
S. I. Aizawa, Bacterial flagella and Type-III secretion systems, FEMS Microbiology Letters, volume 202, páginas 157-164, 2001)
S. J. Gould, E. S. Vrba, Exaptation – A Missing Therm in The Science of Form, Paleobiology, 1982, 8, 4-15)
S. J. Gould, Is a New and General Theory of Evolution Emerging?”, Paleobiology, 1980, 6, 119-130).
Stephen J. Gould, The structure of evolutionary theory, Belknap Press – Harvard University Press, Cambridge, Massachussets, 2002.
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