O texto a seguir foi publicado no Blog UNESP Ciência, à ocasião sob a organização de Maurício Tuffani. Como o Blog UNESP Ciência foi desativado, a reprodução desse texto encontra-se na página do Facebook da Sociedade Racionalista. Neste sábado 8/2/2020 a Folha de São Paulo publicou na seção Tendências e Debates opiniões opostas sobre o Design Inteligente, uma do Professsor de Biologia da USP Diogo Meyer, e outra de Marcos Eberlin do Mackenzie.
Aproveito a ocasião para aqui republicar meu texto de 2013.
Ser ou não ser: eis a questão
O texto “O Design Inteligente e a volta à causa certa“, publicado pelo professor Marcos Nogueira Eberlin no Blog Unesp Ciência, ilustra muito bem como o argumento dos membros do movimento do Design Inteligente se constrói não em cima de argumentação lógica, mas sobre falácias extremamente enviesadas.
“Seguir os dados aonde quer que nos levem”, como diz o professor, é uma premissa básica para o entendimento dos processos naturais. Porém, dados, por si só, não dizem nada. Em primeiro lugar, dados [experimentais] são coletados e organizados. E, por isso, já sofrem interferência durante esse processo. Dados brutos podem até ser obtidos, mas na grande maioria das vezes são refinados, pois de outra forma dificilmente se tornam compreensíveis. E, para serem compreendidos, precisam ser analisados e interpretados.
Como especialista em espectrometria de massas, Eberlin sabe muito bem o que está sendo dito aqui. Não é possível interpretar dados de espectros de massas sem levar em conta a teoria da mecânica quântica, que explica o comportamento dos átomos e das moléculas. Também não é possível interpretar espectros de massas de amostras de má qualidade, mal preparadas ou mal coletadas. Esse tipo de análise requer muitos cuidados e manipulação, ajustes de equipamento, zelo na manipulação de amostras, para que se obtenham dados que possam ser interpretados e fornecer informações que “digam algo”. As premissas científicas para a análise de espectros de massas são exatamente as mesmas para a análise dos fatos que explicam a evolução biológica.
Sendo assim, quando Eberlin afirma que devemos “interpretar dados livres de qualquer amarra, pré-conceito ou predefinição, livres do ‘pacto’ pós-medieval iluminista que fizeram com o materialismo científico e que nos constrange quanto ao que devemos ou não concluir”, está ele, sim, se divertindo com um exercício de retórica absolutamente vazia e desprovida de qualquer sentido, pois ele próprio, Eberlin, faz uso de todas as premissas científicas em seu trabalho que diz que devemos negar para entendermos o Design Inteligente, em detrimento da evolução biológica.
A ciência se construiu em cima de fundamentos, e não por um viés particular. Não fosse assim, a mesma ciência que explica a fragmentação de moléculas em espectrometria de massas não explicaria o comportamento das moléculas em reações químicas, ou ainda nas células de organismos vivos. O fundamento científico é o mesmo para a física, biologia e para a química. Os princípios que regem o comportamento das moléculas nas reações químicas in vitro são exatamente os mesmos que regem o comportamento de moléculas in vivo.
Por isso, causa espanto o juízo de valor negativo implícito na afirmação de Eberlin de que a ciência e o método científico são fruto de um pacto, uma vez que, de fato, a ciência se constrói sobre entendimentos que podem nem sempre ser consensuais, mas que, no entanto, pressupõem um consenso metodológico em torno da experimentação, reprodutibilidade e falseabilidade.
Contudo, uma teoria construída por sobre fatos, passados e presentes, que interpreta os fatos e provê uma explicação para os mesmos, se mostrará válida até que outra, melhor, a substitua. E Eberlin também sabe disso, particularmente no que se refere à história da química, na qual teorias sucederam-se umas às outras, mas somente a partir dos momentos em que as inválidas, ou parcialmente válidas, não puderam explicar senão particularidades, e não generalidades.
O problema do Design Inteligente é não explicar generalidades e tentar explicar apenas particularidades. Ao se justificar em cima de flagelos, olhos e ratoeiras, o DI mostra sua limitação conceitual, que não se sustenta como arcabouço teórico. Logo, não é teoria. Como são detectados “sinais claros de inteligência no universo e na vida”? Partindo de premissas falsas, como a “complexidade irredutível” e a “informação complexa especificada”, termos criados para explicar os mesmos flagelos, olhos e ratoeiras, mas deixando de lado a mensurabilidade da escala do tempo, das taxas de variações (ou mutações), a ocorrência de mudanças ambientais significativas e a filogenia dos seres vivos, amplamente demonstrada pelas técnicas de biologia molecular? O que é, afinal de contas, o “design”? E, no contexto deste, o que seria exatamente um “design inteligente”? Tais definições seriam muito bem-vindas, já que o DI busca explicar apenas o que parece ser visível, mas não as verdadeiras razões pelas quais se mostra o que é visível.
Ao afirmar sobre a impossibilidade da evolução química, Eberlin tenta fazer uso de premissas científicas, e se contradiz por querer, como diz anteriormente, utilizar tais premissas sem amarras. Porém, Eberlin confunde evolução com seleção natural, pois evolução implica em variação, mudança e adaptação, tendo por base a seleção natural. Substâncias podem sofrer evolução se estiverem em organismos vivos. A presença, ou ausência, de determinados compostos químicos em certos indivíduos irá favorecer (ou não) indivíduos de uma população que, frente a determinadas condições ambientais, serão mais ou menos aptos a gerarem prole melhor adaptada, e essa população será favorecida ou não. Logo, a evolução química é possível porque ela faz parte dos indivíduos de populações que transmitem os sistemas bioquímicos gerações após gerações. Sendo assim, os sistemas químicos de seres vivos também são passíveis de sofrer evolução, não por si só, mas como componentes de um sistema vivo.
Portanto, ao afirmar
“É porque sei que a evolução química é impossível que eu a refuto”,
Eberlin, na verdade, demonstra não ter compreendido os princípios básicos do processo da evolução biológica. Também ao afirmar que “evolucionistas (…) assumem que tudo é matéria e energia e, assim, guiados por este pré-conceito, necessariamente concluem o inevitável: a evolução ocorreu”, Eberlin se esquece que a teoria da evolução prescinde de tais “pré-conceitos”. Isso porque a teoria da evolução se fundamenta em observações e fatos, e não em uma premissa de que tudo é matéria e energia. Não somente os achados de Darwin, mas toda a pesquisa em biologia evolutiva feita ao longo de 150 anos, se fundamenta em observações e fatos. O mecanismo da evolução ainda é tema de debates, assim como muitos mecanismos de reações orgânicas, como Eberlin bem sabe. E nem por isso se questiona a validade das teorias que explicam o comportamento dos átomos e das moléculas, como Eberlin também está ciente. A ciência que explica as moléculas, os átomos, as reações químicas, é a mesma ciência que explica a teoria da evolução.
Ironizar o arcabouço teórico da ciência como “pré-conceito chique e perfumado” é o mesmo que cuspir no prato em que Eberlin come todos os dias, sobre o qual construiu seu Currículo Lattes. Como o internauta Gato Pré-cambriano bem disse, infelizmente moléculas não falam. Se falassem, nossa vida de químicos seria bem mais fácil, porém muito mais sem graça. Basicamente, não teríamos mais trabalho, pois as moléculas nos explicariam tudo. E, no entanto, os químicos ainda aí estão, trabalhando arduamente para compreender processos químicos, sejam em sistemas vivos ou não. Quer queiramos ou não, as “explicações filtradas pelo materialismo filosófico” são as que melhor descrevem o mundo à nossa volta. Afinal, porque exatamente o Design Inteligente tem a resposta correta?
Se, como o próprio Eberlin diz,
“Vamos seguir os dados onde quer que nos levem! E vamos interpretá-los, livres de qualquer amarra, pré-conceito ou predefinição”,
isso faz com que os próprios argumentos do Design Inteligente sejam passíveis de escrutínio e análise, questionamento e reflexão. E, como já demonstrado em livros e mais livros, além de artigos científicos, o DI não consegue sustentar suas premissas pelo fato de não serem verificáveis, tampouco falseáveis. Logo, não são científicas. E, consequentemente, não são adequadas para explicar o mundo natural. Embora Karl Popper possa, evidentemente, ser questionado, como já o foi, ainda é seriamente considerado por filósofos da ciência como propositor de uma metodologia moderna de verificação do que pode certamente ser confirmado. Evidentemente que a proposição popperiana pode ser mandada às favas. Nada nos impede. Porém, ao levar em conta as conseqüências de análises e interpretações errôneas dos fatos naturais, é melhor ponderar com cuidado o que significa mandar a proposição de Popper às favas. Afinal, explicar para um doente que sua doença é “fruto de um Design Inteligente”, e não de uma causa genética, pode não ser mais satisfatório nos dias atuais. Ao advogar que somente o Design Inteligente possui a resposta certa, Eberlin confirma, de maneira enfática, no que constitui o arcabouço ideológico do DI: o dogma. Não há questionamento, não há discussão.
O Design Inteligente é um fracasso científico porque não conseguiu explicar nada de maneira definitivamente convincente, com experimentos verificáveis e falseáveis. Também é um fracasso científico porque se fundamenta na premissa teleológica. Ou seja, a de que estruturas “irredutivelmente complexas” só poderiam ter surgido como fruto de um planejamento e, desta forma, com um propósito definido. Como bem se sabe, flagelos, olhos, DNA, e outras estruturas “irredutivelmente complexas” não são fruto de um planejamento inteligente, e sim da evolução biológica que faz com que flagelos sirvam a múltiplas funções, que faz com que existam cegos, míopes, hipermétropes, sofredores de glaucoma e catarata, e que existam tantos defeitos no DNA, que faz com que a principal doença causa de morte de humanos no mundo seja decorrente de defeitos do DNA: o câncer.
Tentar explicar a origem da vida pelo Design Inteligente é apelar para a ignorância e para a preguiça, a entrega ao inevitável desígnio do sobrenatural, que “consegue explicar o que ainda não conseguimos”. É muito cômodo. É muito pouco. Se códigos (genéticos, do DNA) fossem imutáveis, não existiriam as mutações genéticas. Sorry, Eberlin, mas sua retórica estacionou no século 19. Ao afirmar que o Design Inteligente quer “soltar a perna da ciência”, Eberlin é redundante, pois o DI nunca esteve preso à ciência, mas sim à ideologia teleológica de orientação teísta, que não explica nem justifica nada, apenas joga um pano preto por sobre as evidências.
Como Eberlin bem sabe, os cientistas não necessitam do Design Inteligente para rever seus pressupostos e ser um pouco mais autocríticos. Afinal, fazemos isso todos os dias, ao discutirmos com colegas, na sala de aula, na orientação de alunos de pós-graduação, ao ler artigos e livros científicos que apresentam novas formas de enxergar as informações que coletamos. O que seria da espectrometria de massas se estivéssemos ainda utilizando somente ionização por impacto de elétrons? Graças à ciência e ao método científico, hoje entendemos mais, e cada vez melhor, o mundo à nossa volta.
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