Ataques à ciência dão errado

A ciência é um conjunto institucionalizado de práticas de conhecimento, não um sistema filosófico.

O texto a seguir é uma tradução do texto “What Attacks on Science Get Wrong – Science is an institutionalized set of knowledge practices, not a philosophical system” publicado no The Chronicle of Higher Education em 9 de dezembro de 2020, de autoria de Andrew Jewett.

Andrew Jewett é autor de Science, Democracy, and the American University: From the Civil War to the Cold War (Cambridge University Press, 2012). Estudou em Harvard, Yale, New York University, Vanderbilt, e no Boston College. Teve bolsas de estudos do National Humanities Center, do Cornell Society for the Humanities, do National Academy of Education, e do American Academy of Arts and Sciences. Esse texto é adaptado do último livro de Jewett, Science under Fire: Challenges to Scientific Authority in Modern America (Harvard University Press).

Em 2013, eclodiu outra longa linha de disputas sobre o cientificismo. Leon Wieseltier, editor literário do The New Republic, disse aos formandos em humanidades em uma cerimônia de formatura da Universidade Brandeis que eles representavam “a resistência” em uma sociedade dominada pelos “imperialismos gêmeos da ciência e da tecnologia”. Wieseltier mencionou os temas familiares de ataque à ciência – a escravidão dos seres humanos às máquinas, a tirania dos números, as depredações do “tecnologismo”, o domínio incontestável da “utilidade, velocidade, eficiência e conveniência” na cultura moderna. O antídoto, afirmou ele, são as humanidades.

O psicólogo evolucionista Steven Pinker respondeu. Humanistas petulantes, acusou ele, dão boas-vindas à ciência quando ela cura doenças, mas não quando ela atinge seu feudo profissional. A marcha da ciência e do Iluminismo melhorou imensamente a condição humana. Apenas a ciência, insistiu Pinker, poderia abordar “as questões mais profundas sobre quem somos, de onde viemos e como definimos o significado e o propósito de nossas vidas”. Os estudiosos das ciências humanas permaneceriam irrelevantes até que adotassem o humanitarismo cientificamente informado que constituía a “moralidade de fato” do mundo moderno. A controvérsia que se seguiu se estendeu por aquele verão e outono.

Hoje, uma pandemia global atinge o mundo. As sociedades enfrentam questões imediatas, práticas, de vida ou morte, sobre como incorporar ciência e perícia em suas decisões coletivas. E, no entanto, os velhos refrões ainda podem ser ouvidos. O comentarista conservador Sohrab Ahmari argumentou que “a ideologia do cientificismo” mergulhou o mundo em “um funk meio-milênio”. Diante de um vírus mortal, escreveu Ahmari, os modernos não entendem por que “vale a pena viver e passar adiante”; eles não podem nem mesmo afirmar que “ser é preferível a não ser”. Pinker voltou a entrar na conversa, argumentando que as decisões políticas que favorecem o bem-estar econômico em vez da saúde física refletem a “ilusão maligna” da “crença na vida após a morte” dos evangélicos, que “desvaloriza vidas reais”.

E assim este padrão cansativo de décadas de disputas continua. Amargas controvérsias públicas giram em torno de mudanças climáticas, design inteligente, alimentos geneticamente modificados, vacinas, mineração de dados e dezenas de outras questões. Em resposta, os críticos culturais reiteram suas posições familiares – geralmente o lamento de que uma ciência sem alma domina a vida moderna ou o medo de que uma onda crescente de irracionalidade faça com que a humanidade retorne à idade das trevas. As abstrações proliferam, à medida que comentaristas invocam a ciência, o cientificismo, o racionalismo, o Iluminismo, as humanidades, o humanismo, a religião, a fé, a irracionalidade, o Ocidente e a modernidade.

Essas abstrações em grande escala provaram ser extremamente inúteis. Cada um dos problemas que enfrentamos tem seus próprios contornos distintos, suas próprias inter-relações complexas entre ciência e normas sociais, práticas e instituições. Apesar das declarações inflamadas dos combatentes e das preocupações dos espectadores, o empreendimento científico como um todo não está em jogo nos debates sobre vacinação, engenharia genética ou mudança climática. Em vez disso, essas controvérsias envolvem descobertas científicas específicas, teorias, técnicas, dispositivos e práticas, conforme se relacionam com valores profundamente arraigados (e muitas vezes diretamente conflitantes) de muitos grupos diferentes.

Teremos dificuldade para abordar as questões incômodas do século 21 se continuarmos a usar as ferramentas interpretativas dos séculos 19 e 20. Essas ferramentas foram forjadas na polêmica entre as elites culturais conflitantes sobre a extensão da ciência a novos domínios – primeiro na história da vida na Terra e depois nas relações humanas – e seu lugar em escolas e faculdades. As injunções gerais para colocar nossa confiança na ciência, ou religião, ou humanidades, ou qualquer outra estrutura ampla, oferecem pouca orientação sobre como responder às possibilidades sociais levantadas por inovações científicas específicas.

Em meados do século 20, uma grande variedade de líderes religiosos, juntamente com estudiosos das humanidades, conservadores políticos, muitos cientistas e grupos de cientistas sociais dissidentes e progressistas seculares, atribuíram os problemas do mundo moderno a uma difamação moral generalizada. Atribuíram esse problema, por sua vez, a tentativas equivocadas de aplicar métodos científicos ao domínio moralmente carregado da ação humana. As imagens resultantes da ciência como uma força eticamente impotente e culturalmente ameaçadora influenciaram as revoltas da década de 1960, que reforçaram poderosamente a associação da ciência com uma forma tecnocrática de liberalismo. Embora os contornos dessas imagens tenham mudado desde então, elas ajudam a explicar por que muitos americanos vêem a ciência moderna como uma presença cultural estranha, apesar de suas associações igualmente fortes com o progresso tecnológico e o crescimento econômico.

Os desafios à autoridade científica que circularam nos Estados Unidos desde os anos 1920 não estão todos errados. A ciência é um empreendimento confuso e totalmente humano, que não aborda e não pode abordar muitas das questões sociais e morais que enfrentamos. Mas muitos críticos vincularam esse ceticismo apropriado a afirmações extravagantes sobre as ambições dos cientistas para o futuro e a influência no presente.

Apesar de todos os seus insights, a ‘esquerda acadêmica’ de hoje também herda muitos desses maus hábitos interpretativos. Na década de 1980, os pós-estruturalistas argumentaram que a mudança social exigiria o desmantelamento não apenas da visão de mundo predominante, mas também do sentimento subjacente de que uma visão de mundo funcionaria para todos. Não houve respostas finais, apenas pessoas em conflito, travando suas lutas em domínios que iam desde os mais altos níveis de abstração filosófica até as formas mais básicas e mundanas de atividade diária.

Os ataques pós-estruturais aos valores universais propostos pela geração do pós-guerra ampliaram-se para uma crítica à ideia de universalidade. As reivindicações de universalidade eram consideradas meramente como representações de exercícios de poder. A campanha contra o universalismo identificou a ciência como uma espécie de metáfora, uma arma excepcionalmente potente para desarmar aqueles que resistiriam a outras operações de poder. Isso influenciou muito a maneira como os estudiosos pensavam sobre a ciência e seus significados sociais no final do século XX. As concepções foucaultianas de “poder / conhecimento”, a rejeição do essencialismo e universalismo e as afirmações do pós-estruturalismo sobre a centralidade do conflito convergiram em um desafio total à compreensão convencional da ciência.

Esses compromissos moldaram a ‘esquerda acadêmica’ à medida que sua influência cresceu nas décadas de 1980 e 1990. Novos estilos de crítica se juntaram aos antigos, e os pós-estruturalistas negaram que qualquer um pudesse alcançar o que o filósofo Thomas Nagel chamou de “visão de lugar nenhum” e a estudiosa feminista Donna Haraway chamou de “truque de deus”. Mesmo as formas de objetividade de baixo para cima adotadas por muitos marxistas e feministas na veia de Sandra Harding entraram em conflito com essa crítica. Haraway procurou fundamentar a capacidade de um insight genuíno em pontos de vista autoconscientemente parciais. Sem uma estrutura única e libertadora disponível, argumentou ela, uma série de “conhecimentos situados” ofereceu a única alternativa para a falsa objetividade da ciência dominante.

À medida que a presunção de universalidade – e, portanto, de uma estrutura moral comum – desapareceu, uma nova ênfase na diferença prevaleceu na ‘esquerda acadêmica’. “A cosmovisão pós-moderna acarreta a dissipação da objetividade”, escreveu Zygmunt Bauman, com “a lenta erosão do domínio outrora desfrutado pela ciência sobre todo o campo do conhecimento (legítimo)”, levando ao surgimento de múltiplos sistemas de verdade concorrentes.

Há muito a ser dito sobre esses relatos. Como tantos críticos antes deles, no entanto, os teóricos pós-estruturais muitas vezes vincularam os argumentos do senso comum sobre o caráter e os limites do conhecimento científico a retratos abrangentes e redutivos de sua influência hegemônica no mundo moderno. Eles afirmaram que a ciência como um todo reivindica a capacidade de responder a todas as perguntas e resolver todos os problemas. Eles também afirmaram que a ciência reina suprema nas sociedades modernas, determinando os contornos básicos de nosso pensamento. Finalmente, eles atribuíram uma série de problemas sociais específicos à influência cultural da ciência. Ao fazer isso, eles ecoaram gerações de críticos religiosos, humanistas e conservadores com visões sociais muito diferentes das suas.

A segunda dessas suposições – que a ciência dá o tom da cultura moderna – ancora o resto do argumento e merece um exame especial. Se a ciência não é culturalmente dominante, então ela não pode ter causado a ladainha de males atribuídos à ela. A ciência é realmente tão influente? Ou devemos culpá-la instintivamente? O que, exatamente, é científico sobre o nosso mundo?

Nos Estados Unidos, a ciência desempenha funções públicas importantes. Biólogos e físicos exercem formas de autoridade em tribunais que líderes religiosos e críticos literários não possuem. O Federal Reserve baseia-se em especialistas econômicos, não na Bíblia ou em Melville. A Agência de Proteção Ambiental segue sugestões das ciências naturais, o Departamento de Educação das ciências sociais. As escolas públicas de ensino médio podem ensinar darwinismo, mas não criacionismo ou design inteligente. Olhando para esses casos, podemos concluir que a ciência desfruta de uma posição privilegiada única na cultura pública americana.

No entanto, outros especialistas também compartilham desses privilégios. Contamos constantemente com o conhecimento de historiadores, jornalistas, juristas e testemunhas oculares, entre outros, embora não consideremos seu trabalho científico. A posição elevada da ciência acaba sendo em parte uma questão de exclusão seletiva: de acordo com a Primeira Emenda, as instituições públicas nos Estados Unidos se abstêm – com ou sem razão, de forma consistente ou inconsistente – de tratar os princípios teológicos como verdades estabelecidas. Enquanto isso, mesmo os mais fervorosos defensores da literatura e das artes raramente afirmam que oferecem formas de conhecimento que devem ser usadas em tribunais ou em decisões políticas.

Ironicamente, o distanciamento das instituições públicas das religiosas tornou muito mais fácil para os críticos religiosos e humanistas se posicionar contra a ciência, embora esse posicionamento às vezes tenha prejudicado a capacidade de encontrar uma audiência. À medida que as comunidades religiosas se tornavam mais tolerantes umas com as outras, o inimigo comum – antigamente paganismo, agora materialismo, naturalismo ou secularismo – apresentava um alvo óbvio. Certamente, continua o pensamento, as instituições seculares resultam de filosofias seculares, e certamente a ciência produz essas filosofias. À medida que os cientistas aumentavam suas afirmações de neutralidade de valor, mais e mais críticos traçavam uma conexão causal. A ciência, eles argumentaram, trouxe à tona um mundo dominado por valores superficiais e materialistas, por uma mentalidade puramente instrumental que obscurece a própria existência de valores, ou talvez pelos valores de um grupo social hegemônico, pintado com o pincel da neutralidade.

É realmente verdade, entretanto, que as instituições e práticas seculares refletem o domínio cultural da ciência? Alguns países testemunharam a imposição ativa de visões de mundo “científicas” por regimes militantes seculares. No entanto, mesmo em tais casos, o conjunto institucionalizado de práticas de conhecimento que constituem a ciência não se alinhava necessariamente com as filosofias que marchavam sob sua bandeira. Nos Estados Unidos, as relações entre ciência, filosofia e secularização têm sido especialmente complexas e indiretas. É uma simplificação grosseira afirmar, como disse o estudioso de estudos religiosos Huston Smith, que a ciência “criou nosso mundo”. Ou ainda, como manifestou Alasdair MacIntyre, que a vida social contemporânea é em grande parte “a reencenação concreta e dramática da filosofia do século 18. ”

Muitas características do mundo moderno são seculares, mas não científicas. Direito, burocracia, capitalismo, consumismo, jornalismo, educação, esportes: essas esferas, como muitas outras, refletem em parte o declínio do controle das instituições religiosas. Mas eles não compartilham um único fundamento filosófico comum com a ciência. Como todas as formações sociais, cada uma toma muito de sua forma a partir de traços humanos antigos e de conflitos entre grupos específicos. E cada um, por sua vez, gera um conjunto distinto de suposições, valores e comportamentos culturais.

Isso não quer dizer que as pressuposições fundamentais sejam irrelevantes. A maioria das práticas e instituições no Ocidente moderno parecem inúteis ou mesmo prejudiciais para aqueles que presumem que uma divindade determina nossa sorte mundana, que nossas ações terrenas importam principalmente em relação ao nosso destino de outro mundo, ou ambos. Os padrões típicos de esforço nas sociedades modernas se encaixam muito melhor com a visão de que o bem-estar terreno de uma pessoa reflete em grande parte as ações terrenas de uma pessoa, e que essas ações importam principalmente por esse motivo.

Embora a difusão dessa ênfase no aqui e agora tenha tido grandes consequências, ela não é secular nem científica em si. Claro, isso é típico entre não teístas, embora alguns considerem a ação humana essencialmente sem sentido. Mas também se adapta a uma ampla gama de entendimentos religiosos, mesmo quando entra em conflito com outros. Na verdade, um dos pontos de discórdia em muitos debates em torno da ciência e da modernidade é a legitimidade dessas formas comparativamente mundanas de religião.

Existem questões importantes em jogo aqui, com consequências reais. Existe um Deus que intervém em nossos assuntos? Nosso sistema educacional deve enfatizar a biologia, a literatura ou a Bíblia? As respostas são muito importantes. Mas a forma como estruturamos nossos argumentos também é importante. É injusto e socialmente prejudicial empurrar todos os resultados da fragilidade humana para os livros de nossos oponentes. Essa abordagem gera ressentimento e desconfiança, incluindo ceticismo em relação aos nossos próprios programas culturais quando fica claro que exageramos os efeitos do mundo real das perspectivas concorrentes – e que a nossa perspectiva também não é a cura para as fraquezas humanas.

Enquanto isso, procurar enxergar os problemas sociais até as divergências filosóficas nos deixa incapazes de abordar esses problemas por conta própria, tanto por representar erroneamente suas causas principais quanto por nos convencer de que devemos confrontar nossos conflitos intelectuais antes de podermos tomar medidas significativas. Sem exagerar o grau de terreno compartilhado, devemos trabalhar para construir coalizões onde for possível, mesmo se acreditarmos que nossas próprias opiniões irão brilhar no final. Muitas das ideias que moldam profundamente o comportamento social – ideias sobre igualdade racial, por exemplo, ou a necessidade de regulamentação econômica – ultrapassam as perspectivas religiosas e seculares. Nossos padrões concorrentes de apologética não devem impedir a ação coletiva nessas áreas.

Os apologetas da ciência, como seus críticos, muitas vezes foram a extremos absurdos para desacreditar as visões de mundo que consideravam prejudiciais. Mas aqui é importante distinguir entre a ciência como um conjunto de práticas e instituições e as filosofias que vieram com seu nome. Os críticos da ciência costumam dar o passo salutar de diferenciar a ciência das filosofias do materialismo, naturalismo, positivismo e assim por diante. Mas fazem isso de uma maneira que coloca práticas científicas altamente valorizadas em seu próprio lado da linha filosófica e culpa os males do mundo em perspectivas orientadas para a ciência. Seria sensato adotar uma abordagem mais justa.

Tal abordagem insistiria em níveis diferenciados de análise. Há três histórias distintas a serem contadas: uma sobre os papéis sociais das práticas e descobertas científicas, uma segunda sobre as trajetórias e emaranhados de filosofias inspiradas na ciência e uma terceira sobre o desenvolvimento de padrões e instituições seculares. Insistir nessa diferenciação não é afirmar que a ciência é intrinsecamente pura, operando em glorioso isolamento do mundo humano. No entanto, distinguir entre ciência, filosofia e o secular, em vez de confundi-los, nos permitiria entender seus emaranhados históricos mais claramente – e lidar com mais eficácia com as implicações da pesquisa empírica em nossos dias.

Com o tempo, uma avaliação mais generosa e matizada da ciência pode nos ajudar a libertar os pesquisadores das afirmações extravagantes de desinteresse que envolvem seu trabalho. Não são apenas suas reivindicações, mas também os argumentos e ações de muitos outros grupos que aprisionaram os cientistas na jaula da absoluta neutralidade de valor. Os críticos frequentemente declaram que a ciência evita considerações de valor, a fim de culpá-la por isso. Alguns até afirmam que a ciência genuína fornece conhecimento absolutamente certo – não modelos, nem probabilidades, nem cálculos de risco – e deve fazê-lo antes de agirmos sobre ela. A maioria de nós é cúmplice de uma versão disso: quando confrontados com pesquisas de que não gostamos, exigimos que os pesquisadores em questão demonstrem seu completo desinteresse antes de levá-los a sério.

Esse ciclo deve ser quebrado se quisermos reconhecer a ciência pelo que ela realmente é: uma prática inteiramente humana como qualquer outra, mas que produz resultados notáveis. Em vez de argumentar que a validade da ciência depende da neutralidade pessoal de pesquisadores individuais, poderíamos aprender a valorizar as descobertas científicas por sua confiabilidade. Na verdade, poderíamos melhorar os procedimentos científicos adicionando novos recursos, como a participação do cidadão, para ajudar a garantir a confiabilidade dos resultados. Isso pode ser impossível se os críticos continuarem a ver a ciência como uma presença cultural monstruosa e culpá-la pelas falhas da humanidade, em vez de simplesmente avaliar seus pontos fortes e fracos. É hora de superar a polêmica, reconhecer que a ciência é uma característica central de nosso mundo e decidir o que faremos com ela.
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Veja o que dizem pesquisadores da NASA sobre a possível capacidade da ciência de entender tudo.

 

O Financiamento da FAPESP e o combate à pandemia da COVID-19

A importância da ciência para o combate à COVID-19 é fruto de uma das maiores realizações da humanidade: a construção do conhecimento. Essa construção foi possível pelo trabalho conjunto de cientistas e pelo apoio da sociedade, principal beneficiária dos avanços científicos.

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) foi estabelecida com as mesmas premissas, de fomentar o desenvolvimento científico, em prol da sociedade paulista. Prevista na Constituição de 1947 do Estado, foi criada em 1960 e estabelecida em 1962. Desde seu início, a FAPESP objetiva apoiar a pesquisa científica e tecnológica através de auxílios à pesquisa e bolsas de estudo.

O bom gerenciamento de recursos pela FAPESP permite financiar projetos com pesquisadores brasileiros de diferentes áreas atuando na fronteira do conhecimento. A constituição do Estado de São Paulo de 1989 determinou 1 % da receita tributária como orçamento anual da FAPESP. Deste montante, a Fundação destina somente 5% do orçamento para despesas de administração. Em 2019, 35,5% dos dispêndios da Fundação foram destinados a projetos que originam novas ideias e contribuem para o progresso científico. Pesquisas com potencial para inovação de produtos e processos e aumento da competividade econômica foram 57,7% dos dispêndios. Vários projetos financiados pela FAPESP resultam em impacto social, pois contribuem para o bem-estar e a qualidade de vida da população, para diminuir as desigualdades e colaborar no estabelecimento de políticas públicas.

Em 1997, o projeto Genoma FAPESP levou só dois anos para concluir o sequenciamento genético da bactéria Xyllela fastidiosa, responsável pela doença “amarelinho” que ataca a citricultura brasileira. Cientistas brasileiros assimilaram a expertise para sequenciamento genético, com protagonismo no diagnóstico de doenças raras. O genoma do vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, foi sequenciado em tempo recorde por pesquisadores apoiados pela FAPESP. Pesquisadores do estado de São Paulo, financiados pela FAPESP, participam de estudos de fase clínica 3 de vacinas para a COVID-19, em parceria com instituições do exterior. Outros projetos objetivam prevenção, diagnóstico e tratamento da COVID-19. Respiradores e Tomógrafos de impedância elétrica resultam de financiamentos do programa FAPESP de apoio à Pesquisa Inovadora em Pequenas Empresas (PIPE), já sendo utilizados em diversos países para a recuperação e monitoramento pulmonar contínuo em pacientes graves por método não-invasivo.

O Programa BIOEN, para pesquisa de biocombustíveis, realizou o mapeamento de 99% do genoma da cana-de-açúcar em 2019 participando de consorcio internacional, com financiamento da FAPESP. Os resultados viabilizam processos biotecnológicos de melhoramento genético para incrementar a produção de açúcar, etanol e de insumos químicos de fonte renovável. O programa BIOTA, de pesquisas relacionadas à biodiversidade, levou ao estabelecimento de diversas políticas públicas que subsidiaram a legislação atual do estado para conservação da biodiversidade. Programas em áreas estratégicas mais recentes são o de eScience e DataScience e o de Mudanças Climáticas.

Programas de pesquisa com empresas, como os de Pesquisa Inovadora em Pequenas Empresas (PIPE), Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) e os Centros de Pesquisa em Engenharia/Centros de Pesquisa Aplicada (CPE/CPA), são de interesse para o setor industrial. Vários desses projetos são realizados com empresas do setor automotivo, farmacêutico, petrolífero, de cosméticos, agronômico, sucro-alcooleiro, de informática e de inteligência artificial.

Grande parte dos pesquisadores diretamente envolvidos nos projetos financiados pela FAPESP são estudantes de graduação, pós-graduação e pesquisadores de pós-doutorado. A FAPESP financia bolsas de estudo para a formação desses pesquisadores, que serão profissionais altamente capacitados para o setor produtivo e acadêmico. Em 2019, a FAPESP investiu 30% de seu orçamento em bolsas de estudo, atribuídas em processo de rigorosa seleção. Tanto para bolsas de estudo como para auxílios à pesquisa o compromisso financeiro é integral. Uma vez aprovado o projeto, a FAPESP cumpre seu financiamento, baseado em relatórios anuais de desempenho. Projetos de sucesso têm compromissos de 1 a 11 anos, o que garante a realização de pesquisa ousada, bem estruturada e conduzida, que traz resultados relevantes para a ciência, para a economia e para a sociedade.

Próxima a completar seus 60 anos, a FAPESP demonstra ser possível o financiamento de pesquisas que trazem inúmeros benefícios, não somente para São Paulo, mas para todo o Brasil e outros países. Um eventual corte de 30% do orçamento da FAPESP para 2021, previsto no PL-627, anexo IX, página 395, comprometeria quase que irreversivelmente o apoio futuro da FAPESP a projetos científicos, tecnológicos, em parceria com empresas, muitos dos quais voltados para a saúde pública, já em andamento. A sociedade que contribui de maneira decisiva para o funcionamento da FAPESP é diretamente beneficiária dos resultados dos projetos financiados. E a sociedade espera que problemas difíceis de serem solucionados, como o da COVID-19, possam ser cada vez melhor enfrentados e solucionados, com o preparo e o conhecimento dos pesquisadores de São Paulo. A não-aprovação da emenda do PL-627, que leva ao confisco de 30% da receita da FAPESP para 2021, constitui comprometimento da Assembleia Legislativa em manter os recursos da FAPESP, agência de fomento imprescindível para o desenvolvimento do estado de São Paulo e do Brasil.

O USP Talk dos Profs. Glaucius Oliva e Carlos Henrique de Brito Cruz

Em 1 de setembro de 2020, o USP Talks promoveu debate com os Professores Glaucius Oliva e Carlos Henrique de Brito Cruz. Mediado pelo jornalista Herton Escobar, o debate intitulado O futuro da ciência no Brasil – desafio e oportunidades, tem até agora mais de 3.500 visualizações no YouTube. Herton Escobar mencionou a grande participação da comunidade acadêmica durante o debate, o que mostra o interesse e a preocupação sobre o assunto.

O debate – de excelente qualidade – trouxe vários elementos à discussão, como a priorização da pesquisa, a importância do financiamento e da organização das atividades de pesquisa no Brasil e o engajamento dos pesquisadores na defesa da ciência.

Penso que o debate entre os Professores Glaucius e Brito Cruz é, não apenas, importante em si. O tema e questões levantadas também deveriam ser discutidos pela comunidade acadêmica, pois traz muitos pontos importantes. Por exemplo, sobre o financiamento da ciência, que no Brasil atual passa por um momento extremamente crítico. Infelizmente, vários pesquisadores argumentam que as universidades e a pesquisa deveriam ser principalmente financiadas por doações e pela iniciativa privada. Mesmo sabendo que em todos os países com um sistema de ciência minimamente bem estruturado, a maior parte do financiamento da pesquisa científica é feita pelo Estado.

De minha parte, aqui faço minha contribuição em 3 pontos.

Primeiro, a motivação do desenvolvimento da ciência no século 20, principalmente após a 2ª guerra mundial. De fato, a guerra teve sua importância como elemento impulsionador, principalmente pelas inúmeras inovações durante a guerra e delas decorrentes. Mas deve-se atentar que a parte mais importante do desenvolvimento científico do século 20 teve seu estímulo mais importante no século 19, decorrente da teoria da evolução de Darwin (1809-1882), dos avanços da química e física e das descobertas da medicina em conjunto com as descobertas microbiológicas de Pasteur (1822-1895).

A teoria da evolução abriu um universo de questionamentos sobre os processos de hereditariedade e adaptação, que levaram Mendel a propor suas ideias, ainda que reconhecidas tardiamente. O maior entendimento do processo de hereditariedade decorrente da teoria de Darwin levou a uma das maiores descobertas do século 20, que foi da estrutura do DNA. E todas as implicações desta descoberta.

No que se refere à física e à química, os avanços das indústrias de metalurgia e química no século 19, com uma demanda de produtos cada vez maior, fez com que os pesquisadores buscassem entender cada vez melhor a estrutura da matéria, de conhecimento ainda muito escasso no século 19. A conceituação da estrutura do átomo de Dalton (1766-1844) e Thomson (1856-1940) estava longe de ser satisfatória, e não explicava o comportamento das conexões entre os átomos, as ligações químicas. Havia uma grande necessidade de melhor se compreender a estrutura da matéria para que os processos de manufatura química pudessem ser mais bem controlados, incluindo a manipulação de vários materiais, síntese orgânica e os processos bioquímicos (vários relacionados às doenças). A proposta do átomo de Rutherford (1871-1937) e a descoberta da emissão radioativa por Marie Curie (1867-1934) representaram um novo ponto de partida, sobre o qual a teoria quântica se fundamentou. Max Planck (1858-1947), Albert Einstein (1879-1955), Lise Meitner (1878-1968), Niels Bohr (1885-1962), Erwin Shrondinger (1887-1961), Max Born (1882-1970), Louis de Broglie (1892-1987), Wolfgang Pauli (1900-1958), Werner Heisenberg (1901-1976), Paul Dirac (1902-1984) e John von Neumann (1903-1957) são os principais nomes daqueles que elaboraram um novo modelo para o entendimento das menores partículas da matéria. A teoria quântica praticamente se consolidou com bastante antecedência à 2ª Guerra, permitindo a Linus Pauling (1901-1994) propor o modelo atual de ligações químicas em 1931, em seu livro “The Nature of the Chemical Bond”. A grande maioria das maiores descobertas científicas posteriores foi essencialmente fundamentada levando-se em conta a estrutura dos átomos e das moléculas, exceção feita à economia, à qual também é concedido prêmio Nobel.

Fotografia de participantes da 1a Conferência Solvay, considerada o primeiro encontro científico formal da história. De pé, da esquerda para a direita: Robert Goldschmidt, Max Planck, Heinrich Rubens, Arnold Sommerfeld, Frederick Lindemann, Maurice de Broglie, Martin Knudsen, Friedrich Hasenöhrl,  Georges Hostelet, Edouard Herzen, James Hopwood Jeans, Ernest Rutherford, Heike Kamerlingh Onnes, Albert Einstein, Paul Langevin. Sentados, da esquerda para a direita: Walther Nernst, Marcel Brillouin, Ernest Solvay, Hendrik Lorentz, Emil Warburg, Jean Baptiste Perrin, Wilhelm Wien, Marie Curie, Henri Poincaré.

Segundo, ao contrário do senso comum vigente no meio acadêmico, o progresso da ciência só foi possível em decorrência de mudanças sociais significativas. Se tomarmos como ponto de partida a época do Renascimento, o surgimento de mecenas em vários países como a Itália, França, Alemanha, Holanda e Portugal possibilitou a inventores trazerem suas ideias para a sociedade, a começar pelas naus que permitiram viajar pelo mundo e descobrir outros países. Acrescente-se instrumentos para medição do tempo e distância, lentes, máquinas de guerra (algumas já conhecidas na China), os primeiros tratados de anatomia e fisiologia e os primeiros experimentos de física. Sem o financiamento de mecenas, tais invenções não teriam sido possíveis, inclusive as de Leonardo da Vinci, que, ironicamente, nunca saíram do papel. Tal situação perdurou desde o século 16 até praticamente o século 19, e durante este período de mais de 300 anos o avanço da ciência foi lento, muito lento.

Ganhou um pouco mais de impulso com os iluministas no fim do século 18 e com o surgimento dos primeiros governos democráticos, primeiramente nos EUA e depois na Europa.

A grande maioria dos inventores e pesquisadores entre os séculos 16 e 19 eram pessoas de famílias abastadas, que podiam se permitir dedicar-se à pesquisa e às suas invenções. Para citar apenas alguns dos mais famosos dos séculos 17 e 18, o químico Robert Boyle (1627-1691), o biólogo Marcello Malpighi (1628-1694), o biólogo John Ray (1628-1705), o matemático e astrônomo Christiaan Huygens (1629-1695), o físico Issac Newton (1642-1727) e o matemático Gottfried Leibniz (1646-1716) eram de famílias ricas. A maioria dos membros das sociedades científicas não era de cientistas, e sim de aristocratas que buscavam prestígio social. Assim foi o caso quando da criação da Royal Society of London (1662), fundada não por um cientista, mas pelo monarca Carlos II. A Académie des Sciences (1666) era frequentada por Luis XIV e membros da monarquia com assiduidade, nenhum dos quais era cientista. Os filósofos naturais mais conhecidos do século 18 não chegavam a 25, incluindo Benjamin Franklin (1706-1790), Carolus Linnaeus (1707-1778), Erasmus Darwin (1731-1802), avô de Charles Darwin, Cavendish (1731-1810), Priestley (1733-1804), Coulomb (1736-1806) e Lavoisier (1743-1794).

Até cerca de meados do século 20 muita pouca gente tinha acesso à educação formal. O amadurecimento dos sistemas de governo e de contrato social foram aos poucos se aprimorando e oferecendo melhores oportunidades de ensino e educação para parcelas da população menos rica. Este também foi um processo muito lento, mas que, uma vez estabelecido por demanda da sociedade, permitiu a expansão do conhecimento em suas várias esferas. Sendo assim, na verdade, um dos principais fatores que permitiu o avanço do conhecimento e da ciência foi o estabelecimento de sistemas políticos e sociais cada vez melhores, que permitiram melhores condições de vida e educação, ampliando o acesso da sociedade aos sistemas de educação e formação profissional. E não o contrário.

Finalmente, a grande questão do momento, sobre estabelecer prioridades para o financiamento da pesquisa, é uma questão complexa, bem complexa. Existe um grande volume de literatura sobre esse assunto, que mereceria ser mais bem conhecida de maneira a melhor fundamentar esse debate tão necessário.

O debate promovido pelo USP Talks entre os Professores Glaucius Oliva e Brito Cruz deveria ser apenas o ponto de partida para uma reflexão mais ampla e profunda por parte dos acadêmicos e suas instituições, além da sociedade como um todo, sobre um assunto essencial: afinal, qual é o valor que a ciência tem no mundo de hoje?

Beethoven 250 – Part 1

(source: https://www.classicfm.com/composers/beethoven/guides/beethoven-20-facts-about-great-composer/young-beethoven-deaf/)

This year the world was going to celebrate Beethoven’s 250 birth anniversary. Poor Beethoven. His birth anniversary was almost completely forgotten because of the terrible COVID-19 pandemia, what is understandable, though.

As a classic music amateur, specially of Beethoven’s music, I would like to share a series of posts on Beethoven’s life and work. Ludwig van Beethoven is considered one of the most important classical music composers, ever. For example, the BBC music magazine website classical-music.com considers Beethoven as the 3rd most important composer, after Johann Sebastian Bach and Igor Stravinsky.

The information that will be shared in the posts about Beethoven was collected from different books, cited at the end. The posts will be divided by different periods of Beethoven’s life.

One really interesting book is John Stanley’s “Classical Music”, that discusses the birth of music, music styles, musical instruments, cultural influences on music and presents a historical contextualization for each music period. It is very well written for those who don’t know much about classical music and want to learn more about it.

Ludwig van Beethoven was born on December 16, 1770 in Bonn Germany. His grandfather, Lodewijk van Beethoven, settled in Bonn as a musician. Ludwig’s father, Jan van Beethoven, married Maria Magdalena Keverich. Of the couple’s seven children, only three will survive to the adult age: ​​Ludwig, Karl and Johann.

Like his grandfather and father, Ludwig was doomed from an early age to become a musician. However his early musical education was unfocused, hard and slow because of his father’s character, and because Ludwig’s formal education was very poor. From the age of eleven he dropped from all schooling. Two fortunate meetings will help him find his way. The first with Christian Gottlob Neefe, who became his teacher in 1782 and gave him the book of J. S. Bach’s Well-Tempered Clavier. In 1782, Ludwig at eleven years old published his first work, the nine variations for keyboard on a Dressler step.

The second meeting was with Franz Gerhard Wegeler, a medical student who became Ludwig’s close friend. Wegeler introduced Beethoven to the family von Breuning, in a very cultivated and liberal environment. Beethoven then learned about the German writers of the Auflckirung and the Sturm and Drang, in particular Klopstock, Goethe and Schiller. He shared pre-revolutionary aspirations which were embraced by the most progressive intelectuals of the German bourgeoisie.

Beethoven was awarded with the title of second organist of the court when he was thirteen years old. He became assistant organist, repetitor (clavicembalist) at the theater and orchestral musician. Since he was the first-born among his brothers, he became rather serious, very introspective, focused and concentrated, with mood swings and with a tendency to melancholy.

In 1874 the new prince-archbishop Archduke Maximilian Franz arrived in Bonn. The archduke soon perceived young Beethoven’s gifts, took him under his protection and sent him to Vienna for a study trip in 1787, expecting him to become a Mozart’s pupil. However, the meeting of Beethoven and Mozart was not very pleasant. Mozart did not gave him much attention, even though he recognized Beethoven’s talent. Beethoven was back to Bonn after less than two weeks in Vienna because of his mother’s death, when he developed a disposition to melancholy.

Beethoven continued to his efforts on his education and became enrolled in literature courses at the University of Bonn in 1789. He approached Schubert, Schumann, Haydn and Mozart, with literary interests that included German-speaking writers, such as Goethe and Schiller, as well as Plutarque, Shakespeare and mystics of India.

Beethoven adopted the name of Tondichter (poet of sounds), aiming to establish a connection between the poets of speech and his romantic conception, reflecting in a music expressing verbal poetry of feelings. Beethoven’s efforts were to create a music which as not an end in itself, but with a meaning to reveal the human intense expressions. Such intense feelings also resulted of his engagement in music as a revolutionary expression. One of his professors, Euloge Schneider, was a supporter of the French Revolution. Beethoven became committed to the revolutionary soul that shaked the old world. He remained with such ideals for the rest of his life.

Beethoven was still a beginner composer when at twenty years old, with a strong character and personality that lead him to develop a unique originality. He composed a funeral cantata on the death of Joseph II in 1790. In 1792 Joseph Haydn became aware of one of Beethoven’s cantatas and encouraged him to strength his studies. In November 1792 Beethoven left Bonn to Vienna, where he will remain until his death.

To be continued…

Bibliography

Menuhin, Y. and David, C. W., “A música do homem”, Martins Fontes, 1990. This is a portuguese translation of “The Music of Man”, by the same authors, published by Methuen Publications, Agincourt, Canada, in 1979. The Brazilian Portuguese technical revision of this book was by Isaac Karabtschevsky, who was artistic director of the Brazilian Symphony Orchestra between 1969 and 1994.

Robertson, A. (editor), “Chamber Music”, Penguin Books, 1957.

Rushton, J., “Classical Music”, Thames and Hudson, 1986.

Mellers, W., “Man and His Music, Vol. III – The Sonata Principle”, Barrie & Jenkins, 1988.

Belgodere-Johannès, V. “Histoire de la Musique”, Librairie Renouard, Henri Laurens, ed., 1947.

Stanley, J., “Classical Music”, Reader’s Digest, The Reader’s Digest Association, Inc, 1994.

Various newspapers articles collected during over 30 years, unfortunatelly unclassified.

The Lessons of the Pandemic

A colleague and friend of mine, Professor Mariana Cabral de Oliveira (Biology Institute, Universidade de São Paulo), shared with me the article by Major George A. Soper, “The Lessons of the Pandemic”, published in Science magazine 100 years ago.

It is quite impressive to read the paper by Major Soper, in special the conclusions.

Some highlights of the paper.

The pandemic which has just swept round the earth has been without precedent. There have been more deadly epidemics, but they have been more circumscribed; there have been epidemics almost as widespread, but they have been less deadly. Floods, famines, earthquakes and volcanic eruptions have all written their stories in terms of human destruction almost too terrible for comprehension, yet never before has there been a catastrophe at once so sudden, so devastating and so universal.

The most astonishing thing about the pandemic was the complete mystery which surrounded it. Nobody seemed to know what the disease was, where it came from or how to stop it. Anxious minds are inquiring to-day whether another wave of it will come again.

The fact is that although influenza is one of the oldest known of the epidemic diseases, it is the least understood. Science, which by patient and painstaking labor has done so much to drive other plagues to the point of extinction has thus far stood powerless before it. There is doubt about the causative agent and the predisposing and aggravating factors. There has been a good deal of theorizing about these matters, and some good research, but no common agreement has been reached with respect to them.

The measures which were introduced for the control of the pandemic were based upon the slenderest of theories. It was assumed that the influenza could be stopped by the employment of methods which it was assumed would stop the other respiratory diseases. This double assumption proved to be a weak reed to lean upon. The respiratory diseases as a class are not under control. They constitute the most frequent cause of death, yet it is not known how they can be prevented.

Three main factors stand in the way of prevention: First, public indifference. […]

The second factor which stands in the way of prevention is the personal character of the measures which must be employed. […]

Third, the highly infectious nature of the respiratory infections adds to the difficulty of their control. […]

The conclusions by Soper:

It is worth while to give more attention to the avoidance of unnecessary personal risks and to the promotion of better personal health. Books have been written on the subject. The writer’s idea of the most essential things to remember are embodied in the following twelve condensed rules which were prepared in September, recommended by the Surgeon-General of the Army and published by order of the Secretary of War to be given all possible publicity:

1. Avoid needless crowding-influenza is a crowd disease.

2. Smother your coughs and sneezes-others do not want the germs which you would throw away.

3. Your nose, not your mouth was made to breathe through-get the habit.

4. Remember the three C’s-a clean mouth, clean skin, and clean clothes.

5. Try to keep cool when you walk and warm when you ride and sleep.

6. Open the windows-always at home at night; at the office when practicable.

7. Food will win the war if you give it a chance-help by choosing and chewing your food well.

8. Your fate may be in your own handswash your hands before eating.

9. Don’t let the waste products of digestion accumulate-drink a glass or two of water on getting up.

10 Don’t use a napkin, towel, spoon, fork, glass or cup which has been used by another person and not washed.

11. Avoid tight clothes, tight shoes, tight gloves-seek to make nature your ally not your prisoner.

12. When the air is pure breathe all of it you can-breathe deeply.

The article by George A. Soper can be read here, if you have access to Science magazine.

Ref: Soper, G. A. Lessons of the Pandemic. Science,  30 May 1919, Vol. 49, Issue 1274, pp. 501-506. DOI: 10.1126/science.49.1274.501

A Tribute to Italia

Italia is, together with Greece, the cradle of western civilization, although such assumption cannot be considered as definitive. Western civilization has been strongly influenced by Eastern Mediterranean countries, and those by Asian nations.

Historians, however, consider Italia as one of the most influential countries on human culture. It is not necessary to make a long description of Italia’s cultural importance. Along with Greece, Italian philosophy has been very influential since ancient times, thanks to work of many thinkers such as Seneca, Epictetus, Thomas Aquinas, Machiavelli, Giordano Bruno, Galileo Galilei, Antonio Gramsci, just to mention the perhaps some of the most well-known. Italian writers produced some of the finest examples of literary works, including those of Dante Alighieri, Dino Buzzati, Italo Calvino, Umberto Eco, Dario Fo, Giacomo Leopardi, Primo Levi, Alberto Moravia, Luigi Pirandello, Giuseppe T. di Lampedusa and many others.

 

Leonardo da Vinci and his painting La Belle Ferronnière, c. 1495

Italian painters achieved perhaps the most significant works ever, considering the genius of Leonardo da Vinci, but also of Sandro Botticelli, Michelangelo, Raphael, Caravaggio and Modigliani.

The Italian science has always been very strong and at the frontier of knowledge. Some of the best known Italian scientists are Leonardo da Vinci, Galileo Galilei, Evangelista Torricelli (who invented the barometer), Marcello Malpighi (who was one of the first to develop microscopy and histology), Francesco Redi (who, before Louis Pasteur, proved that spontaneous generation was a wrong conception), Maria Gaetana Agnesi (the first highly-reputed female mathematician), Lazzaro Spallanzani (the father of artificial insemination), Luigi Galvani (the discoverer of “animal electricity”), Alessandro Volta (the inventor of battery), Stanislao Cannizzaro (a chemist who started to organize the elements in a rational way), Enrico Fermi (a highly influential physicist contemporary of Albert Einstein), Maria Montessori (an innovative educator, whose ideas are now adopted in more than 20.000 schools worldwide).

Maria Gaetana Agnesi (1718-1799)

The Italian cinema transformed many times the movie culture, because of its impressive diversity and creativity. Most recognized Italian film directors are Michelangelo Antonioni, Bernardo Bertolucci, Vittorio de Sica, Federico Fellini, Vittorio Gassman, Sergio Leone, Pier Paolo Pasolini, Roberto Rossellini, Luchino Visconti, Franco Zeffirelli, among many others. The Italian visual arts also has numerous awarded artists, too numerous to be mentioned.

The Italian history and culture is rich, very rich. Italia is a small country with an enormous soul, generous, funny, thoughtful, gorgeous, bold, ahead of time.

Try some Italian music. Puccini’s arias and Vivaldi’s The Four Seasons are two of the most played classical music compositions ever. But Italian classical music has a much more diverse collection of compositions, by more than 400 composers over time.

In this tribute to Italy, I selected 13 classical music pieces here. This very short selection includes 193 minutes of Italian music. Or a little more than 3 h. It is not much. I think that today Italy deserves much more than 3 h of our time.

Arcangelo Corelli Concerto Grosso Nr.8 op. 6 (13:34 minutes)

Corelli was born in 1653 in the small town of Fusignano. Corelli composed 48 trio sonatas, 12 violin and continuo sonatas, and 12 concerti grossi.

Tomaso Albinoni – Adagio for Organ and Strings (9:11 minutes)

Albinoni was born in Venice in 1671. His instrumental music (99 sonatas, 59 concerti and 9 sinfonie) is significant, among other works.

Antonio Vivaldi Concerto L´Amoroso RV 271 in E Major (10:43 minutes)

Vivaldi was an extremly prolific composer. Born in Venice in 1678, Vivaldi wrote more than 500 concertos for solo instrument and strings, 230 for violin, for bassoon, cello, oboe, flute, viola d’amore, recorder, lute, or mandolin. About forty concertos are for two instruments and strings, and about thirty are for three or more instruments and strings. He also composed 46 operas, sacred choral music, simphonies, 90 sonatas and chamber music.

Domenico Scarlatti – Sonata in B minor, K. 27 (4:17 minutes) – you will need to clic the link inside the Youtube picture to listen the sonata.

Scarlatti was born in Naples in 1685. Son of another outstanding composer, Alessandro Scarlatti, he is mainly known for his 555 keyboard sonatas.

Leonardo da Vinci: Canto di lanzi sonatori di rubechine (4:06 minutes)

Did you know that Leonardo da Vinci was also a music composer?

Giuseppe Tartini: Devil’s Trill Sonata (15:55 minutes)

Tartini was born in Piran (1692). Tartini’s works include violin concerti (at least 135), violin sonatas, sacred works, a Stabat Mater, trio sonatas and a symphony.

Giovanni Battisti Pergolesi׃ Stabat mater, for soprano & alto (43:54 minutes)

Giovanni Battista Pergolesi was born in Jesi (1710). We was one of the first composers of the opera bufa (comic opera). He wrote several operas and also sacred works, numerous instrumental works, including a violin sonata and a violin concerto.

Luigi Boccherini – Guitar quintet Nr. 9 C-Dur, G 453 “La ritirata di Madrid” (32:08 minutes)

Boccherini was born in Lucca (1743). He composed the largest collection of cello works, and also keyboard pieces, violin solo pieces and duets, string trios, piano trios, trio sonatas, string quartets, piano quartets, flute quartets, wind quartets, string quintets, piano quintets, flute quintets, guitar quintets, sextets, octets, cello concertos, symphonies, music for theatre and vocal works.

Niccolò Paganini – La Campanella (7:00 minutes)

Paganini is considered the most achieved violin composer ever. Many of his violin works are extremely difficult to play. He also composed for guitar and orchestra.

Gioachino Antonio Rossini, La gazza ladra (overture) (9:35 minutes)

Gioachino Antonio Rossini was born in Pesaro (1792). Rossini was another very prolific composer, who wrote several cantatas, pieces of instrumental music, sonatas, sacred music and secular vocal music. His operas are considered among the most appreciated by the public, such as Il Barbiere di Siviglia.

Mario Castelnuovo-Tedesco – Guitar Concerto Op.99 (21:41 minutes)

Mario Castelnuovo-Tedesco was born in Florence (1895). He was another hardworker: his list of compositions is almost endless.

Ottorino Respighi – Fontane di Roma (17:33 minutes)

Respighi was born in 1879 in Bologne. He composed music for operas, ballets, vocal and coral music, orchestral music and chamber music.

Luciano Berio – Ritirata notturna di Madrid de Boccherini (7:34 minutes)

Berio was born in Oneglia (1925). His music is considered as seminal in the 20th century. He composed music for piano, orchestra, several solo instruments, and also vocal music.

If you appreciated this small selection of Italian classical music, just share it. While listening to it, think of Italian people. Or about all of us.

Complexidade irredutível e o “argumento do design”

O texto a seguir foi originalmente publicado no blog “Química de Produtos Naturais” em 3 de junho de 2010.

O termo “complexidade irredutível” foi criado por Michael Behe (Behe, 1996) para designar estruturas ou sistemas biológicos formados por componentes essenciais para o funcionamento íntegro destas estruturas ou sistemas. A ausência de um único componente destes não permitiria que estes fossem operacionais. Como exemplos, Behe indica o flagelo bacteriano, os ciclos bioquímicos (o Ciclo de Krebs, o Ciclo de Calvin, etc.), o olho, o DNA e o cérebro. Segundos Behe, tais estruturas ou sistemas não poderiam ter surgido gradualmente, como indica a teoria da evolução, através de mudanças gradativas. Logo, seriam objeto de um “design”.

De acordo com a proposta do Movimento do Design Inteligente (MDI), um “designer inteligente” teria criado milhões de linhagens de bactérias com flagelos, de uma só vez. Todavia, estudos genéticos, fisiológicos e anatômicos indicam que os flagelos surgiram ao longo da evolução a partir de um ancestral comum. Para muitos tipos de bactérias a função primária dos flagelos é a excreção, e não propulsão. Para outras bactérias, o flagelo é utilizado para que a bactéria possa aderir a uma superfície, ou a outras bactérias (Aizawa, 2001). Flagelos foram tornando-se cada vez mais complexos ao longo da evolução. Por exemplo, em Archea (bactérias primitivas) 18 a 20 genes são necessários para o desenvolvimento de um flagelo de 2 partes, utilizado principalmente para excreção e adesão. Na bactéria Campylobacter jejuni são necessários 27 genes para a formação de um flagelo já envolvido em atividades motoras. Na bactéria Escherichia coli são necessário 44 genes para a formação de um flagelo que atua para o movimento coordenado da bactéria. Ou seja, o processo evolutivo é claro. Não há design inteligente (http://www.newscientist.com/article/dn13663-evolution-myths-the-bacterial-flagellum-is-irreducibly-complex.html ). Ver também Liu e Ochman (2007).

Apesar disso, Behe, em seu recente “The Edge of Evolution”, insiste que um “designer inteligente” interveio no processo evolutivo de maneira a produzir as formas de vida que se conhece, que não podem ser fruto do acaso ou de mutações aleatórias (Behe, The Edge of Evolution). Entretanto, Behe não faz juz ao conceito de forma correta, pois a diversidade de formas não é gerada por mutações aleatórias e sim pelo processo de seleção natural. Muito embora mutações genéticas sejam aleatórias, a seleção natural não o é. Resulta da interação dos indivíduos de uma espécie com outras espécies e com o ambiente natural.

William Dembski então argumenta que, na improbabilidade da ação do acaso, a ação do “design” seria a única forma do aparecimento da diversidade biológica. Dembski não consegue fazer a distinção entre puro acaso e processos contingentes da evolução. Ao ilustrar a Teoria da Evolução de maneira reducionista e mecânica, tanto Behe quanto Dembski alegam que a evolução orgânica dependeria de puro acaso, o que seria totalmente implausível. Com isso, só um “design inteligente” justificaria o aparecimento de estruturas e sistemas biológicos “irredutivelmente complexos”. De acordo com Dembski, “O que as leis físicas não conseguem explicar é como produzir contingência (…). Se esta não surge como resultado das leis naturais, então como surge a contingência? Somente duas respostas são possíveis: ou a contingência é cega e sem propósitos, e resulta do puro acaso, ou é um processo guiado, com um propósito, fruto de uma causa inteligente (Dembski, Intelligent Design, 165). O que Dembski faz questão de não mencionar é que a contingência opera ao longo de processos estabelecidos do ponto de vista histórico e estrutural.

A abordagem de Behe e Dembski é fundamentalmente reducionista e mecânica, e não leva em consideração o desenvolvimento dinâmico e as interações que ocorrem na natureza. Desta forma, estruturas e sistemas que superficialmente podem parecer “irredutivelmente complexos” são, na verdade, fruto de um processo extremamente complexo de interações. Os primeiros estágios do surgimento de tais estruturas e sistemas é o ponto chave para o entendimento de como se desenvolvem de formas menos complexas para mais complexas. Como o processo de seleção natural não tem um propósito ou destino, pois não existe um objetivo evolutivo, o processo da seleção natural apenas preserva as mutações aleatórias que promovem vantagens adaptativas.

O desenvolvimento do olho é um bom exemplo de como isso ocorreu. Olhos primitivos ainda existem, hoje, em vermes, que detectam apenas variações de intensidade de luz e se orientam de acordo com estas variações. Ora, se, por um acaso, uma mutação faz com que indivíduos que detectam apenas intensidade de luz passem a detectar movimento, ou uma gradação de cores, terão adquirido uma ligeira vantagem adaptativa sobre aqueles indivíduos que não têm esta capacidade. Assim, 1% de visão é melhor que a cegueira total, e 6% é melhor do que 5%, e 10% é melhor do que 6%. O desenvolvimento do olho, de maneira gradual, não somente é perfeitamente plausível como foi verificada pela análise filogenética molecular. Os genes que codificam para a formação e o funcionamento dos olhos de humanos, polvos, sapos, insetos e crustáceos são essencialmente os mesmos, tendo surgido há aproximadamente 600 milhões de anos (Carl Zimmer, Evolution, Harper Collins Publishers, New York, 2008, p. 128).

Uma explicação diferente para o surgimento de estruturas e sistemas aparentemente “irredutivelmente complexos” foi fornecida pelo falecido biólogo Stephen Jay Gould. De acordo com Gould, quando se originaram, tais estruturas e sistemas não teriam uma função definida. A função seria definida ao longo da história evolutiva à qual tais estruturas e sistemas fossem submetidos. Gould argumenta que os organismos vivos não são apenas resultado de influências do ambiente, mas também de sua integridade estrutural, que limita e direciona a variação através da qual opera a seleção natural (Gould, 2002). Desta forma, a evolução não seria isotrópica, igual em todas as direções. Embora mutações produzam variação genética de maneira aleatória, sem necessariamente promover vantagens adaptativas, tal processo não estabelece que as variações na forma (fenotípicas) não possam ter uma direção preferencial. O desenvolvimento estrutural de um organismo ao longo de sua vida limita a variação fenotípica que será possível apresentar, pois mudanças surgidas em um determinado estágio determinarão as mudanças possíveis em um estágio posterior. Assim, mudanças estruturais em determinadas características de um organismo irão influenciar na estrutura e funcionamento do organismo como um todo. Tais informações são transmitidas geneticamente de geração para geração, e não permitem modificações por demais significativas. Ou seja, o processo evolutivo resulta de um processo dialético entre “o interno” (que seriam restrições estruturais herdadas geneticamente) e “o externo” (pressões seletivas ambientais), de maneira análoga à ontogenia (desenvolvimento ao longo da vida) dos indivíduos, que resultam de interações dialéticas entre seus genes e o ambiente. Gould define um organismo vivo como sendo “uma entidade integrada exercendo restrições sobre sua história, ao mesmo tempo em que se situa em um ambiente específico” (Gould, 1980).

Gould confessa que esta idéia foi exposta por Darwin. Naturalistas do século XIX adotaram duas possíveis abordagens para explicar a evolução: funcionalista (Darwin, Lamarck e Cuvier) e formalista, ou estruturalista (Saint-Hilaire, Owen e Goethe). Os funcionalistas diziam que as características dos organismos existiam por razões de utilidade; já os formalistas enfatizavam a unidade estrutural comum entre organismos aparentados. Os formalistas negavam a possibilidade da evolução, pois acreditavam que somente modificações superficiais eram possíveis. Membros do MDI como Benjamin Wiker e Jonathan Witt tomaram emprestados os argumentos dos formalistas para justificar a ação de um “designer”.

No entanto, os argumentos dos formalistas foram postos por terra por Darwin e outros, que comprovaram que estruturas biológicas também estão sujeitas ao processo evolutivo, embora de forma limitada devido às suas características inerentes. Sendo assim, Darwin promoveu uma quebra do paradigma no debate funcionalista-formalista, adicionando uma nova dimensão: o fator histórico. Contudo, os membros do MDI não perceberam (ou não quiseram perceber) tal mudança neste debate, e se ativeram aos argumentos formalistas.

Um outro conceito introduzido por Gould (e Elisabeth S. Vrba) é o conceito de exaptação. Exaptação é a utilização de uma característica existente para um novo propósito funcional (Gould e Vrba, 1982). Tal característica pode tanto se originar através da seleção natural para propósitos adaptativos, na qual a derivação para um novo propósito representa uma variação funcional, ou tal característica pode ser um spandrel (termo definido como uma característica fenotípica que é um produto secundário da evolução de outra característica, em vez de ser um produto direto da seleção adaptativa) que não teria surgido através da adaptação, mas como um efeito estrutural co-lateral. Artigo recentemente divulgado pelo Boletim da Agência FAPESP traz um exemplo de exaptação: a dormência de sementes de determinadas árvores não teria surgido para superar uma deterioração fisiológica das mesmas, mas adquiriu esta função ao longo do tempo (Fabio de Castro, “Esperteza vegetal”, Boletim Agência FAPESP, 19/4/2010).

A mente humana seria um exemplo contundente de exaptação, e não de “complexidade irredutível”, pois claramente é produto de um longo processo evolutivo, no qual aqueles indivíduos que tiveram suas capacidades mentais aguçadas adquiriram vantagens adaptativas e deram origem ao Homo sapiens. A capacidade de ler, de escrever, de apresentar conceitos matemáticos extremamente complexos e criar obras de arte não teve papel na origem da mente. Estruturas complexas, como a mente, são inerentemente cheias de potencial e apresentam inúmeras propriedades emergentes. Tais estruturas frequentemente podem assumir funções outras do que aquelas para as quais a seleção natural as fez prevalecer. Quando compreendemos tais explicações, e podemos apreciar o significado dos “spandrels” e da exaptação, os argumentos do design inteligente se desintegram e a origem física da vida se torna aparente. Edward O. Wilson considera que até mesmo a cultura seja um produto de seleção natural (E. O. Wilson, Consciliência, p. 119-130).

Uma vez proposto o conceito de exaptação por Gould, este também pôde ser utilizado para explicar a evolução do flagelo bacteriano (Pallen e Mtazke, 2006). Como mencionado na postagem anterior sobre este assunto, flagelos de diferentes linhagens bacterianas exerceram funções diferentes. Assim, uma explicação meramente funcionalista e teleológica, que visa justificar o flagelo como um órgão responsável pelo movimento de bactérias, não se sustenta. Os elementos chave para a formação do flagelo resultam da exaptação de “formas flagelares” que surgiram (através da evolução) por outras razões.

Na natureza existem muitas estruturas que podem dar origem a sistemas ordenados e complexos através da seleção natural. O surgimento de tais estruturas são direcionadas por princípios físicos, químicos e matemáticos. D’Arcy Wentworth Thompson foi um dos biólogos pioneiros a argumentar sobre a ocorrência repetitiva de formas ordenadas, como espirais (em conchas e chifres de carneiros, por exemplo) e hexágonos (colméias de abelhas e estruturas de corais). Biólogos aceitam que a forma esférica das células, por exemplo, não seja resultante de uma informação genética e sim tenha origem em forças puramente físicas. Stuart Kauffman argumenta que o que se considera “ordem” na natureza surge naturalmente através da emergência de sistemas complexos (Kauffman, 1993). Kauffman sugere que a diversidade das células presentes nos organismos vivos não resulta somente de um processo histórico, mas seria resultante de princípios auto-organizacionais de sistemas dinâmicos. Tal ordenação seria produzida através de um processo completamente natural através da interação de várias forças e processos que originam uma estrutura emergente. A organização cria um potencial para a emergência de novas formas de organização, novas formas de vida, novas funções e comportamentos, impossíveis em formas menos organizadas. A ordem espontânea que emerge em sistemas complexos pode prover estruturas iniciais de formas orgânicas sobre as quais atua a seleção natural.

A tradição estruturalista (formalista) da Biologia explica a emergência de características altamente complexas, que podem parecer “irredutivelmente complexas” à primeira vista. A combinação do estruturalismo com a dialética é a chave para entender o processo evolutivo e o desenvolvimento das formas biológicas que conhecemos. As leis naturais e as contingências históricas explicam a complexidade na natureza, deixando completamente de lado a necessidade de um “designer”.

Bibliografia consultada

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E. O. Wilson, Consciliência, Editora Campus, 1998.

J. B. Foster, B. Clark, R. York, Critique of Intelligent Design, Monthly Review Press, New York, 2008.

Lynn Margulis and Dorion Sagan, What is Life?, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 2000.

M. Behe, Darwin’s Black Box, Free Press, New York, 1996.

Mark J. Pallen & Nicholas J. Matzke, From The Origin of Species to the origin of bacterial flagella, Nature Reviews Microbiology 2006, 4, 784-790).

Michael Shermer, Why Darwin Matters, Owl Books, , New York, 2006.

Niall Shanks, God, the Devil and Darwin, Oxford University Press, 2006.

R. Liu e H. Ochman, Stepwise formation of the bacterial flagellar system, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, volume 104, páginas 7116-7121, 2007.

S. A. Kauffman, The Origins of Order: Self-organization and Selection in Evolution, Oxford University Press, New York, 1993).

S. I. Aizawa, Bacterial flagella and Type-III secretion systems, FEMS Microbiology Letters, volume 202, páginas 157-164, 2001)

S. J. Gould, E. S. Vrba, Exaptation – A Missing Therm in The Science of Form, Paleobiology, 1982, 8, 4-15)

S. J. Gould, Is a New and General Theory of Evolution Emerging?”, Paleobiology, 1980, 6, 119-130).

Stephen J. Gould, The structure of evolutionary theory, Belknap Press – Harvard University Press, Cambridge, Massachussets, 2002.

Pictures at an Exhibition – 1

Travelling in North America, last Tuesday February 11th I visited the San Francisco Asian Art Museum. The museum collection is incredibly diverse and impressive. Selected pictures are shown below, after the video of Alice Sarah Ott playing Modest Mussorgsky’s Pictures at an Exhibition*.

For those who are interested to see the whole series of pictures I took, it is here. Note that some pictures are better than others, since I am not a professional photographer and the pictures were taken with my cell phone camera. Many have explanatory labels, but many have not. Enjoy, but visiting the Museum is very much worthwhile.

*About Mussorgsky’s “Pictures at an Exhibition” music, see here.

A Política Cultural de Adolf Hitler

Durante seu governo, Adolf Hitler objetivou não somente realizar seu projeto político, mas também cultural. Já em 1933 os líderes nazistas empreenderam a sincronização (Gleichschaltung) das organizações profissionais e sociais de ideologia e política nazistas. Joseph Goebbels, ministro do Iluminismo Popular e Propaganda, foi quem coordenou o “alinhamento” do meio artístico e cultural à ideologia nazista, que incluiu o expurgo de judeus e outras pessoas consideradas indesejadas.

Também em 1933 os nazistas e a Associação de Estudantes Nacional-Socialistas Alemães (Nationalsozialistischer Deutscher Studentenbund, or NSDStB) organizaram queimas de livros considerados não-alemães. Obras de Bertolt Brecht, Thomas Mann, Erich Maria Remarque, Franz Werfel, Lion Feuchtwanger e Heinrich Heine, alguns dos autores mais ilustres, foram levadas às chamas.

Ainda em 1933, a Câmara Cultural do Reich (Reichskulturkammer)—que incluía cinema, música, teatro, imprensa, literatura, artes em geral e difusão radiofônica— foi estabelecida para regular todas atividades culturais alemãs. A cultura nazista adotou estilo de realismo clássico, enaltecendo a vida no campo, a família e as comunidades locais, bem como o heroísmo em campo de batalha, a valorização da indústria alemã e a raça ariana. Este conjunto de valores esteve intimamente associado à propaganda nazista, em franca oposição aos movimentos de modernização cultural dos anos 1920-1930.

Em 1937 foi realizada a Exibição da Grande Arte Alemã em Munique, organizada pelo governo. Exibição vizinha também foi organizada, sobre a Arte Degenerada (Entartete Kunst), para mostrar ao povo as “influências nefastas” da arte moderna. O governo alemão incluiu na exposição Arte Degenerada obras de Max Ernst, Franz Marc, Marc Chagall, Paul Klee e Wassily Kandinsky. Ao mesmo tempo, Goebbels ordenou o confisco das obras de autores considerados não-alemães de todos os museus. Muitas obras foram destruídas.

Marc Chagall – The walk

Obras literárias promovidas pelo governo nazista tinham claro conteúdo propagandístico, valorizando a vida no campo e a atuação na guerra. Por outro lado, a Câmara Literária criou listas negras para a eliminação de livros de autores indesejados de todas as bibliotecas públicas. A arte cinematográfica e teatral foi igualmente propagandística por um lado, e por outro destruidora da diversidade cultural, com foco principalmente na eliminação de autores da comunidade judaica. Na música o governo também promoveu a desvalorização de compositores considerados não-alemães, como Felix Mendelssohn e Gustav Mahler. Além disso, foram proibidas apresentações musicais que tivessem distância da cultura nazista, como o jazz.

Os nazistas objetivaram regular, dirigir e censurar manifestações artísticas e culturais que não correspondessem diretamente a seus ideais, de maneira a “formatar” uma nova cultura alemã, que influísse diretamente nas atividades diárias da população. A forma de realização do governo alemão foi através de uma política de terror e convencimento sobre a sociedade.

Os resultados não demoraram a surgir.

Entre janeiro de 1933 e dezembro de 1941, mais de 104.000 refugiados da Alemanha e da Áustria emigraram para os EUA. Nesse contingente, mais de 9.000 eram pesquisadores científicos, artistas jornalistas e intelectuais. Outros emigraram para os Países Baixos, Inglaterra e França. Dentre outros, Max Ernst, Otto Freundlich e Gert Wollheim foram para Paris. Para Amsterdam, Max Beckmann, Eugen Spiro e Heinrich Campendonck. Para Londres, John Heartfield, Kurt Schwitters, Ludwig Meidner e Oskar Kokoschka. Formaram o Coletivo de Artistas Alemães (Paris) e em Londres a Liga de Cultura Alemã. Na Alemanha, artistas como Otto Dix, Willi Baumeister e Oskar Schlemmer realizaram um auto-exílio, isolando-se dos círculos culturais.

Na Inglaterra foi instituído o Britain the Academic Assistance Council, que promoveu o emprego de 524 pesquisadores em cargos acadêmicos em 36 países, 161 dos quais nos EUA. Os Estados Unidos foram os maiores beneficiários do “brain drain” oriundo da Alemanha nazista. Até 1940, somente o periódico Zentralblatt für Mathematik und ihre Grenzgebiete era considerado de bom nível para a publicação de artigos em matemática. Com a tomada do governo pelos nazistas, artigos de pesquisadores judeus passaram a não ser mais referenciados. Com isso, matemáticos americanos criaram a revista Mathematical Reviews, até hoje publicada pela American Mathematical Society. Também, 113 pesquisadores experientes em biologia e 107 em física emigraram para os EUA, e influenciaram diretamente no resultado da II Guerra Mundial.

Foram criadas diversas iniciativas para o apoio financeiro de pesquisadores, escritores, artistas e jornalistas refugiados e/ou judeus. Estas incluíram a Emergency Society of German Scholars Abroad, a Fundação Rockefeller levantou fundos para apoiar intelectuais alemães refugiados, o Emergency Rescue Committee foi estabelecido pela organização American Friends of German Freedom. Grupos de refugiados tiveram o apoio da então primeira dama dos EUA Eleanor Roosevelt.

Apesar do movimento nazista, Pablo Picasso, Henri Matisse, Marc Chagall, Jacques Lipchitz, Amedeo Modigliani, Pablo Casals, André Gide e André Malraux permaneceram em seus países de origem. Artistas que tiveram que fugir clandestinamente para Portugal através dos Pireneus foram André Breton, Marc Chagall, Max Ernst, Lion Feuchtwanger, Konrad Heiden, Heinrich Mann, Alma Mahler-Werfel, André Masson, Franz Werfel e Wilfredo Lam. De Portugal emigraram para os EUA.

Alvin Johnson, professor na New School for Social Research in New York, levou para os EUA Hannah Arendt, Erich Fromm, Otto Klemperer, Claude Lévi-Strauss, Erwin Piscator e Wilhelm Reich. Vários destes editaram a Encyclopedia of the Social Sciences. Laszlo Moholy-Nagy criou uma ramificação da escola de artes Bauhaus em Chicago. Foram criados o Frankfurt Institute na Colombia University e o Erwin Panofsky’s Institute of Fine Arts na New York University, com cargos sendo preenchidos por intelectuais emigrados para os EUA.

Hannah Arendt

Um dos maiores presentes de Hitler para os EUA foi o compositor Arnold Schoenberg, que viveu em Los Angeles até o seu falecimento em 1951. Schoenberg foi professor na University of Southern California e depois na University of California em Los Angeles. Outros compositores como Paul Hindemith, Béla Bartók, Darius Milhaud e Igor Stravinsky também emigraram, além dos músicos Artur Rubinstein, Hans von Bülow, Fritz Kreisler, Efrem Zimbalist e Mischa Elman. Também para Los Angeles ou cercanias foram Thomas Mann, Bertolt Brecht, Lion Feuchtwanger, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Otto Klemperer, Fritz Lang, Artur Rubinstein, Franz e Alma Werfel, Bruno Walter, Peter Lorre, Sergei Rachmaninoff, Heinrich Mann, Igor Stravinsky, Man Ray e Jean Renoir.

A política cultural de Hitler e Goebbels promoveu um desastre na Alemanha da guerra e pós-guerra, inclusive contribuindo para sua própria derrota. Cientistas emigrados da Alemanha e outros países para os EUA trabalharam e contribuíram definitivamente no projeto Manhattan e no posterior desenvolvimento científico norte-americano.

Nota: Durante uma inspeção pelo exército alemão no apartamento de Picasso em Paris, um dos soldados teria visto a obra Guernica, do pintor catalão, e perguntado:

– Você fez isso?

Ao que Picasso respondeu:

– Vocês fizeram.

Guernica, de Pablo Picasso

Fonte: Peter Watson, The Modern Mind, Perennial, 2000.

Evolucionismo versus DI: réplica a Eberlin – Ser ou Não Ser: Eis a Questão

O texto a seguir foi publicado no Blog UNESP Ciência, à ocasião sob a organização de Maurício Tuffani. Como o Blog UNESP Ciência foi desativado, a reprodução desse texto encontra-se na página do Facebook da Sociedade Racionalista. Neste sábado 8/2/2020 a Folha de São Paulo publicou na seção Tendências e Debates opiniões opostas sobre o Design Inteligente, uma do Professsor de Biologia da USP Diogo Meyer, e outra de Marcos Eberlin do Mackenzie.

Aproveito a ocasião para aqui republicar meu texto de 2013.

Ser ou não ser: eis a questão

O texto “O Design Inteligente e a volta à causa certa“, publicado pelo professor Marcos Nogueira Eberlin no Blog Unesp Ciência, ilustra muito bem como o argumento dos membros do movimento do Design Inteligente se constrói não em cima de argumentação lógica, mas sobre falácias extremamente enviesadas.

“Seguir os dados aonde quer que nos levem”, como diz o professor, é uma premissa básica para o entendimento dos processos naturais. Porém, dados, por si só, não dizem nada. Em primeiro lugar, dados [experimentais] são coletados e organizados. E, por isso, já sofrem interferência durante esse processo. Dados brutos podem até ser obtidos, mas na grande maioria das vezes são refinados, pois de outra forma dificilmente se tornam compreensíveis. E, para serem compreendidos, precisam ser analisados e interpretados.

Como especialista em espectrometria de massas, Eberlin sabe muito bem o que está sendo dito aqui. Não é possível interpretar dados de espectros de massas sem levar em conta a teoria da mecânica quântica, que explica o comportamento dos átomos e das moléculas. Também não é possível interpretar espectros de massas de amostras de má qualidade, mal preparadas ou mal coletadas. Esse tipo de análise requer muitos cuidados e manipulação, ajustes de equipamento, zelo na manipulação de amostras, para que se obtenham dados que possam ser interpretados e fornecer informações que “digam algo”. As premissas científicas para a análise de espectros de massas são exatamente as mesmas para a análise dos fatos que explicam a evolução biológica.

Sendo assim, quando Eberlin afirma que devemos “interpretar dados livres de qualquer amarra, pré-conceito ou predefinição, livres do ‘pacto’ pós-medieval iluminista que fizeram com o materialismo científico e que nos constrange quanto ao que devemos ou não concluir”, está ele, sim, se divertindo com um exercício de retórica absolutamente vazia e desprovida de qualquer sentido, pois ele próprio, Eberlin, faz uso de todas as premissas científicas em seu trabalho que diz que devemos negar para entendermos o Design Inteligente, em detrimento da evolução biológica.

A ciência se construiu em cima de fundamentos, e não por um viés particular. Não fosse assim, a mesma ciência que explica a fragmentação de moléculas em espectrometria de massas não explicaria o comportamento das moléculas em reações químicas, ou ainda nas células de organismos vivos. O fundamento científico é o mesmo para a física, biologia e para a química. Os princípios que regem o comportamento das moléculas nas reações químicas in vitro são exatamente os mesmos que regem o comportamento de moléculas in vivo.

Por isso, causa espanto o juízo de valor negativo implícito na afirmação de Eberlin de que a ciência e o método científico são fruto de um pacto, uma vez que, de fato, a ciência se constrói sobre entendimentos que podem nem sempre ser consensuais, mas que, no entanto, pressupõem um consenso metodológico em torno da experimentação, reprodutibilidade e falseabilidade.

Contudo, uma teoria construída por sobre fatos, passados e presentes, que interpreta os fatos e provê uma explicação para os mesmos, se mostrará válida até que outra, melhor, a substitua. E Eberlin também sabe disso, particularmente no que se refere à história da química, na qual teorias sucederam-se umas às outras, mas somente a partir dos momentos em que as inválidas, ou parcialmente válidas, não puderam explicar senão particularidades, e não generalidades.

O problema do Design Inteligente é não explicar generalidades e tentar explicar apenas particularidades. Ao se justificar em cima de flagelos, olhos e ratoeiras, o DI mostra sua limitação conceitual, que não se sustenta como arcabouço teórico. Logo, não é teoria. Como são detectados “sinais claros de inteligência no universo e na vida”? Partindo de premissas falsas, como a “complexidade irredutível” e a “informação complexa especificada”, termos criados para explicar os mesmos flagelos, olhos e ratoeiras, mas deixando de lado a mensurabilidade da escala do tempo, das taxas de variações (ou mutações), a ocorrência de mudanças ambientais significativas e a filogenia dos seres vivos, amplamente demonstrada pelas técnicas de biologia molecular? O que é, afinal de contas, o “design”? E, no contexto deste, o que seria exatamente um “design inteligente”? Tais definições seriam muito bem-vindas, já que o DI busca explicar apenas o que parece ser visível, mas não as verdadeiras razões pelas quais se mostra o que é visível.

Ao afirmar sobre a impossibilidade da evolução química, Eberlin tenta fazer uso de premissas científicas, e se contradiz por querer, como diz anteriormente, utilizar tais premissas sem amarras. Porém, Eberlin confunde evolução com seleção natural, pois evolução implica em variação, mudança e adaptação, tendo por base a seleção natural. Substâncias podem sofrer evolução se estiverem em organismos vivos. A presença, ou ausência, de determinados compostos químicos em certos indivíduos irá favorecer (ou não) indivíduos de uma população que, frente a determinadas condições ambientais, serão mais ou menos aptos a gerarem prole melhor adaptada, e essa população será favorecida ou não. Logo, a evolução química é possível porque ela faz parte dos indivíduos de populações que transmitem os sistemas bioquímicos gerações após gerações. Sendo assim, os sistemas químicos de seres vivos também são passíveis de sofrer evolução, não por si só, mas como componentes de um sistema vivo.

Portanto, ao afirmar

“É porque sei que a evolução química é impossível que eu a refuto”,

Eberlin, na verdade, demonstra não ter compreendido os princípios básicos do processo da evolução biológica. Também ao afirmar que “evolucionistas (…) assumem que tudo é matéria e energia e, assim, guiados por este pré-conceito, necessariamente concluem o inevitável: a evolução ocorreu”, Eberlin se esquece que a teoria da evolução prescinde de tais “pré-conceitos”. Isso porque a teoria da evolução se fundamenta em observações e fatos, e não em uma premissa de que tudo é matéria e energia. Não somente os achados de Darwin, mas toda a pesquisa em biologia evolutiva feita ao longo de 150 anos, se fundamenta em observações e fatos. O mecanismo da evolução ainda é tema de debates, assim como muitos mecanismos de reações orgânicas, como Eberlin bem sabe. E nem por isso se questiona a validade das teorias que explicam o comportamento dos átomos e das moléculas, como Eberlin também está ciente. A ciência que explica as moléculas, os átomos, as reações químicas, é a mesma ciência que explica a teoria da evolução.

Ironizar o arcabouço teórico da ciência como “pré-conceito chique e perfumado” é o mesmo que cuspir no prato em que Eberlin come todos os dias, sobre o qual construiu seu Currículo Lattes. Como o internauta Gato Pré-cambriano bem disse, infelizmente moléculas não falam. Se falassem, nossa vida de químicos seria bem mais fácil, porém muito mais sem graça. Basicamente, não teríamos mais trabalho, pois as moléculas nos explicariam tudo. E, no entanto, os químicos ainda aí estão, trabalhando arduamente para compreender processos químicos, sejam em sistemas vivos ou não. Quer queiramos ou não, as “explicações filtradas pelo materialismo filosófico” são as que melhor descrevem o mundo à nossa volta. Afinal, porque exatamente o Design Inteligente tem a resposta correta?

Se, como o próprio Eberlin diz,

“Vamos seguir os dados onde quer que nos levem! E vamos interpretá-los, livres de qualquer amarra, pré-conceito ou predefinição”,

isso faz com que os próprios argumentos do Design Inteligente sejam passíveis de escrutínio e análise, questionamento e reflexão. E, como já demonstrado em livros e mais livros, além de artigos científicos, o DI não consegue sustentar suas premissas pelo fato de não serem verificáveis, tampouco falseáveis. Logo, não são científicas. E, consequentemente, não são adequadas para explicar o mundo natural. Embora Karl Popper possa, evidentemente, ser questionado, como já o foi, ainda é seriamente considerado por filósofos da ciência como propositor de uma metodologia moderna de verificação do que pode certamente ser confirmado. Evidentemente que a proposição popperiana pode ser mandada às favas. Nada nos impede. Porém, ao levar em conta as conseqüências de análises e interpretações errôneas dos fatos naturais, é melhor ponderar com cuidado o que significa mandar a proposição de Popper às favas. Afinal, explicar para um doente que sua doença é “fruto de um Design Inteligente”, e não de uma causa genética, pode não ser mais satisfatório nos dias atuais. Ao advogar que somente o Design Inteligente possui a resposta certa, Eberlin confirma, de maneira enfática, no que constitui o arcabouço ideológico do DI: o dogma. Não há questionamento, não há discussão.

O Design Inteligente é um fracasso científico porque não conseguiu explicar nada de maneira definitivamente convincente, com experimentos verificáveis e falseáveis. Também é um fracasso científico porque se fundamenta na premissa teleológica. Ou seja, a de que estruturas “irredutivelmente complexas” só poderiam ter surgido como fruto de um planejamento e, desta forma, com um propósito definido. Como bem se sabe, flagelos, olhos, DNA, e outras estruturas “irredutivelmente complexas” não são fruto de um planejamento inteligente, e sim da evolução biológica que faz com que flagelos sirvam a múltiplas funções, que faz com que existam cegos, míopes, hipermétropes, sofredores de glaucoma e catarata, e que existam tantos defeitos no DNA, que faz com que a principal doença causa de morte de humanos no mundo seja decorrente de defeitos do DNA: o câncer.

Tentar explicar a origem da vida pelo Design Inteligente é apelar para a ignorância e para a preguiça, a entrega ao inevitável desígnio do sobrenatural, que “consegue explicar o que ainda não conseguimos”. É muito cômodo. É muito pouco. Se códigos (genéticos, do DNA) fossem imutáveis, não existiriam as mutações genéticas. Sorry, Eberlin, mas sua retórica estacionou no século 19. Ao afirmar que o Design Inteligente quer “soltar a perna da ciência”, Eberlin é redundante, pois o DI nunca esteve preso à ciência, mas sim à ideologia teleológica de orientação teísta, que não explica nem justifica nada, apenas joga um pano preto por sobre as evidências.

Como Eberlin bem sabe, os cientistas não necessitam do Design Inteligente para rever seus pressupostos e ser um pouco mais autocríticos. Afinal, fazemos isso todos os dias, ao discutirmos com colegas, na sala de aula, na orientação de alunos de pós-graduação, ao ler artigos e livros científicos que apresentam novas formas de enxergar as informações que coletamos. O que seria da espectrometria de massas se estivéssemos ainda utilizando somente ionização por impacto de elétrons? Graças à ciência e ao método científico, hoje entendemos mais, e cada vez melhor, o mundo à nossa volta.